Saudações caríssimos!
Retornamos às atividades, ou melhor, ressuscitamos após um período de mais de
ano e meio de vida atribulada e/ou confusa. Mas retornamos com o gosto de
anunciar mais um trabalho de fôlego de nosso querido Rafael de Figueiredo.
É novamente com os sentimentos de empolgação,
novidade e admiração que terminamos mais um romance de concepção mediúnica da
parceria entre o médium gaúcho e Frei Felipe. Na sequência dos eventos
dramáticos desencadeados em “Do século das luzes”, Jean retorna à vida terrena
com propósito e missão algo mais pacatos e civis. “O Testemunho dos Sábios”
traz-nos não apenas a sequência de acontecimentos de uma vida, mas nos leva a
traçar a linha de evolução histórica do espiritualismo da era de Mesmer e da Revolução
à era dos cientistas e sábios que marcaram as pesquisas espíritas entre meados
do século XIX e o início do século XX. Só por isso o livro já seria digno de
uma análise atenciosa por parte dos interessados nessa trajetória.
Mas
o novo livro de Rafael é também resultado de seu amadurecimento como escritor
do gênero novelesco. Enquanto suas obras anteriores guardam os mesmos traços de
superioridade e propósito, com o fio condutor moral e metafísico claramente
discernível por entre os acontecimentos da vida, narrados com grande riqueza de
detalhe, agora sentimos que o gênero se impõe adicionalmente pelo ritmo e tônus
mental específicos. Do começo ao fim temos a impressão de nos confrontarmos com
uma vida. A “lição” da história não se sobressai aos eventos cotidianos e ao
esmiuçar dos sentimentos e conflitos internos de nosso protagonista, agora
nascido do outro lado da Mancha sob a alcunha de Edouard Smith (novamente
pseudônimo).
O
grande choque desta sequência para o leitor mais conservador é a troca de
referenciais filosófico-religiosos de Jean/Edouard. Enquanto o primeiro se
fazia notar pela religiosidade sincera e vivida, muito além das roupagens
sociais e linguísticas que caracterizam a quase totalidade da humanidade em sua
experiência religiosa, o segundo reflete a educação e conceitos céticos e até
certo ponto materialistas do final do século XIX. Tal transformação pode soar conflitante
com o princípio ocidental de evolução contínua da consciência, mas a riqueza de
ambas as obras nos exige cuidados e aprendizados novos em vista da superação de
visões preconceituosas e limitadas dessa evolução.
O
conjunto das obras nos revela, assim, a importância e primazia da personalidade
sensível e arraigadamente moralista de Jean/Edouard, e como ela reage aos
ambientes históricos em suas fortes variações políticas, estéticas, sociais e
científicas. Mais do que um direcionamento distinto para vidas distintas, nosso
personagem traz à tona a ambiguidade e o conflito da dialética entre
interioridade e contexto sócio-histórico.
Além disso, há uma beleza poética e filosófica em uma transição da vida
missionária para a simplicidade dos compromissos honrados da vida burguesa, de
modo que a ética subjacente se mostra acentuadamente não revolucionária, mas
sim trabalhista. O progresso pelo esforço dos dias e o labor das pequenas
atividades profissionais, compromissos familiares, toma proporção quase
gloriosa diante da vida instintivamente mais heroica do passado. Nosso conceito
de uma missão é amadurecido pelo conjunto da obra.
Se tivéssemos de
definir o propósito existencial de Edouard – e, consequentemente, do livro –
poderíamos supor que se trata de uma vida em busca de definição e rumo;
trata-se de uma história sobre o posicionamento derradeiro de uma alma diante
de problemas e questões que se lhe acumulam ao longo dos séculos. Se com Jean
(em Do século das luzes) sentimos esse posicionamento vir de modo fácil
e descomplicado, é também verdade que Edouard não goza das vantagens de uma
vida condicionada e dirigida ao serviço religioso. Como homem livre, de origem
abastada, de educação materialista ou ao menos secular de fins do século XIX,
Edouard tem horizontes mais largos de possibilidades, e, é claro, potenciais
tentações ou distrações desconhecidas do órfão miserável acolhido desde a
infância em um mosteiro. O alargamento desses horizontes, suas vantagens,
dentre as quais se sobressai o aumento de responsabilidade por suas escolhas, e
os riscos que essa ampliação da responsabilidade lhe traz (os atrasos, as
dúvidas, os dramas de consciência, o desperdício de tempo,...) são finamente
trabalhados ao longo da narrativa, de modo que é mais a sensação do continuum
do drama do que qualquer apresentação teórica e explícita que nos deixa a
suspeitar de que este é o tema da obra.
Ao final, guardadas as
proporções, temos a impressão de que este segundo e talvez derradeiro capítulo
da história de Jean/Edouard o aproxima muito da realidade e dos conflitos que
presentemente vivenciamos; da falta de referências e lideranças; da impossibilidade
de conciliar nossa cultura secular, relativista e materialista (no sentido
metafísico ou socioeconômico) com a adesão de fé às ideias hoje quase
inaceitáveis de ordem e bondade intrínsecas do cosmos. O sentido da vida, que
eclodia fácil e quase automaticamente para Jean, não pode ser facilmente
encontrado por Edouard, diante de quem um maior número de caminhos estão
abertos. Só nesta perspectiva saberemos valorizar corretamente o mérito do
relutante, mas dedicado Edouard, frente ao piedoso e exaltado Jean.