Como diagnosticara Hegel, a alienação é
a presença de uma consciência sem a respectiva autoconsciência. Essa constatação é sempre
muito clara quando uma sociedade está perfeitamente ciente de suas mazelas e desafios,
falhando simultaneamente, contudo, em interiorizar esta consciência ao modo de
responsabilidade.
O drama de tal alienação se manifesta
particularmente nas acusações mútuas e atribuições indiscriminadas de culpa a
todos e a tudo.
No movimento seguinte do espírito
coletivo, quando a consciência é assumida e alargada pela autoconsciência, o
que na vida das nações ocorre costumeiramente por intermédio das classes
intelectuais, o papel de indivíduos e instituições, até então alienado, é
interiorizado como responsabilidade.
Com isso, as torpezas sociais
objetificadas e coisificadas em suas versões alienadas adentram, ou melhor, se
reencontram na esfera da liberdade.
O povo, ao menos por intermédio dessa
classe intelectual, se reconhece como fonte e meio tanto dos desafios que
discerne, quanto dos possíveis caminhos que conduzam à sua superação. Toma, por
assim dizer, as rédeas que há pouco considerava pertencentes ao “poder”, à
“elite”, ou qualquer outra instância social ultimamente escorada e alimentada
por ele mesmo (o povo).
Na liberdade recém-readquirida pela
autoconsciência o povo repudia agora os mecanismos (partidos, representantes,
leis, instituições e até a própria cultura) por ele mesmo produzidos ativa ou
passivamente com fins à sua própria subserviência, não permitindo-se mais,
entretanto, a revolta enfurecida contra estes, uma vez que já os reassumiu como
um patrimônio seu. Fato este que se pode averiguar pela indecisão e incerteza com
que a população se rebela contra “algo”, “as injustiças” ou “tudo o que aí
está”, sem conseguir organizar-se mental ou politicamente quanto às
providências cabíveis.
Entram, então, em jogo as opiniões
conciliadoras, instaurando clima reflexivo sério e debate generalizado, ora
excitado, ora ponderado, quanto às resoluções inadiáveis e projetos para
reformas futuras.
Já não mais se apresentam os quadros
infelizes de guerra civil, matança ou prisões arbitrárias que caracterizaram as
revoltas passadas, embora indivíduos marcados por vivências estereotipadas
acalentem com grande prazer a reminiscência destes episódios, vindo a exigir
maior dureza por parte da polícia ou dos rebeldes, convictos de que somente a
força pode dobrar a força.
Urge, pois, que a autoconsciência se
generalize por intermédio dos grupos esclarecidos e devidamente aparatados com
o conhecimento indispensável sobre o funcionamento da vida pública, sobre as
bases do direito e da ética, bem como dos fenômenos históricos que contribuam para o alargamento do panorama especulativo.
Uma vez que a autoconsciência já
alcançada é dificilmente reconduzida ao estado de alienação, podemos esperar
inúmeros e duradouros frutos dos processos sociais recentemente deflagrados.
Em sentido prático e com caráter
imediato já se desenrolam progressos concretos e de grande impacto sobre a vida
da nação. Já se desfez ou abalou-se a postura hipócrita com que muitas figuras
públicas têm mascarado sua indiferença escandalosa diante dos anseios e
necessidades do povo a que pertencem e de que não se diferenciam, exceto pelos
poderes criminosos que acumularam por meio do dinheiro ou desvirtuação das
leis. Já não podem sofismar que o seu comportamento esteja de acordo com
eleitores que “calam e consentem”.
Em outras almas mais valorosas do
serviço coletivo (sim, as há também) inflamou-se o desejo quase esquecido de
honrar os compromissos assumidos perante a pátria, de modo que se movimentam no
sentido de aproveitar o constrangimento dos hipócritas e o temor dos
francamente maus, a fim de que se agilizem os programas largamente aguardados das
reformas política, partidária e outras emendas constitucionais.
Conquanto a autoconsciência seja por si
só um progresso inestimável no amadurecimento do povo, como no de um sujeito,
ela ainda representa o modo subjetivo de se encarar a realidade, pelo que deve
ser sempre enfatizada a necessidade de se levá-la a ato.
É preciso que a consciência passe
novamente ao estado que lhe é próprio, a objetividade, agora não mais ingênua e
alienada, mas transubstanciada em ação livre e autoconsciente de sujeitos.
Esta nova forma de consciência não é
mais que a realização, a concretização da autoconsciência, que é um momento de
dever-ser. E os indivíduos, o povo como um todo, está suspenso na angústia do
puro dever-ser, da pura liberdade característica da tomada de autoconsciência.
Tão grandes são a angústia e a incerteza do puro dever-ser, que as
personalidades humanas, incapazes de pagar o ônus de sua altura divina, corre o
risco de se fragmentar ou recrudescer. Por isso a urgência em se passar quando
possível, na vida individual ou coletiva, do puro dever-ser à concretização de
projetos que desempenhem este papel conscientizador.
Em termos bem mais simples, um debate
indefinido tende mais a confusão do que ao progresso, e em algum momento
figuras de liderança têm de exercer o papel de representação ao menos de um
conjunto mediano e razoável dos desejos coletivos.
Como o diálogo sério não é habito de
nossa sociedade, o diagnóstico das nuanças da vontade coletiva (os grupos de
interesse) não está facilmente acessível, produzindo o relativo estupor diante
das manifestações. Um estupor que atinge tanto os próprios manifestantes,
quanto a sociedade que assiste apreensiva quanto aos rumos do processo
transformador.
Saindo do campo da análise e
permitindo-nos certa liberdade de divagação e opinião, pensamos ser positivo e
imensamente valioso o momento vivido, ainda que ele possa revelar-se muito
menos frutífero do que esperamos.
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