quinta-feira, 23 de maio de 2013

A experiência do Absoluto


A prova cabal da unidade das religiões é o fato de elas compartilharem uma experiência em comum, a qual é, propriamente falando, a experiência religiosa primária ou experiência mística.
Divergências doutrinárias, éticas e rituais podem causar embaraço a uma compreensão unificada da religiosidade humana, e mesmo os fenômenos sobrenaturais variam infinitamente quanto aos tipos preferenciais de cada tradição e seu conteúdo, quase sempre influenciado pela cultura. Católicos veem Maria, budistas veem mandalas, xamãs veem animais de poder; e os papéis atribuídos a estas visões dentro de cada doutrina são ainda mais díspares.
Experiências místicas, contudo, parecem contradizer todos os nossos esforços de especificação e definição das religiões enquanto exclusivas, e os que experimentam estados místicos, notadamente os fundadores das religiões e alguns de seus principais santos e reformadores, sempre estão mais de acordo entre si, de forma bastante cosmopolita, do que com os adeptos de seu próprio círculo.
William James, como de costume, parece estar certo em categorizar a experiência mística como dotada de:
1-                 Inefabilidade: Se nos faltar o coração ou o ouvido, não poderemos interpretar com justeza o músico nem o amante, e seremos até capazes de considerá-los donos de espírito fraco. Para o místico, quase todos conferimos às suas experiências um tratamento igualmente incompetente. Os não experimentados na mística sequer se aproximam de compreender de que ela se trata. Analogias são quase totalmente inúteis.
2-          Qualidade no noética: conquanto muito semelhantes a estados de sentimento, os estados místicos parecem também para os que os experimentam, estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. São iluminações, revelações, cheias de significado e importância, por mais inarticuladas que continuem sendo; e, via de regra, carregam consigo um senso curioso de autoridade pelo tempo sucessivo.
3-      Transitoriedade: Ninguém sustenta um estado místico por mais do que um momento. Este pode ser um átimo de segundo ou algumas horas, mas após o seu término o místico mais experiente – aquele que vivenciou o fenômeno inúmeras vezes – sente-se distanciado do estado místico e sabe perfeitamente que dele guarda apenas uma vaga memória.
4-               Passividade: se bem que a aproximação de estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares, como fixação da atenção... o místico tem a impressão de que a sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos a certos fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, tais como o discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico[1]
É precisamente o que místicos têm relatado desde tempos imemoriais. Quando Krishna se mostra a Arjuna; quando um nirvana é descrito; quando Deus se revela a Moisés; quando Ibn Arabi encontra Alá; quando Paulo encontra Jesus a caminho de Damasco; Plotino encontra o Uno; Agostinho entende o chamado; quando o índio mergulha no Grande Espírito e o taoísta vê a raiz do Tao; quando o yogi atinge o samadhi sem semente ou um poeta vê a pulsação do cosmo, todos estão tentando apreender o inapreensível. E por trás de suas metáforas enxergamos sempre e em todos os lugares aquelas características habilmente capturadas por James.
Mais por nossa necessidade do que por vontade própria, o místico nomeia Aquilo com que se deparou no êxtase: O Supremo, Deus Todo Poderoso, o Bem, o Belo, o Uno, o Hálito Divino, o Espírito Santo, a Natureza Búdica, o Reino, a Força, o Móvel dos mundos, o Fogo, o Vazio, o Silêncio, o Nada... E tantos nomes – humanos que são – somente arranham, quase conspurcam a verdadeira experiência do Absoluto. Por esses nomes guerreiam as religiões, distanciadas dos mestres que detinham a experiência original e que sabiam estar empregando metáforas pedagógicas, termos simplórios de referência.
Excluídos os elementos culturais, e fenômenos de clarividência ou outros que possam se associar a um êxtase, podemos arriscar uma descrição genérica que perpasse todas as culturas humanas.
Trata-se sempre de um silêncio que tudo preenche; que nos provoca muitas vezes mais arrebatamento do que o maior arrebatamento que a música nos pode proporcionar. Aquele silêncio que vem depois de toda a compreensão, depois que tudo foi dito, como um momento de satisfação tão perfeita que nada mais precisamos ouvir.
A visão idem. Nem a mais vaga noção de espaço ou tempo, de objeto ou coisa, de finitude ou particularidade. Maior do que grande, uma amplitude absoluta, uma luz perfeita que tudo perpasse e que é tudo, e que é quase um nada para o intelecto, pois ele não pode conceituar ou isolar elemento algum.
Não há mais tato, porque não há mais corpo, mas um novo sentido intuitivo sente tudo.
A clareza mental é ausente de mácula e não mais se aflige em devassar os particulares.
O coração finalmente encontra repouso, está em casa, e é invadido por uma misericórdia, um acolhimento e uma amizade que o transubstanciam em serenidade e fraternidade universal.
Esta é a existência verdadeira, de modo que a morte não é mais tema, e não precisa sequer ser confrontada com argumentos.
Nenhuma religião pode se basear apenas sobre estas revelações, já que multifária é a experiência humana; psicológica, existencial, intelectual, cultural e paranormal. São incontáveis outros fatores que colaboram com a construção do imaginário, da visão de mundo, da sensibilidade e da moralidade, mas com esforço, tato e um bom estudo das religiões é possível resgatar estes traços genéticos da experiência mística.
Nas palavras de Plotino, o místico participa do intelecto divino e vê as coisas mais ou menos como Deus as veria. Sua alma, que é cópia da Alma universal, imita o entendimento do Uno sobre si mesmo.
“A vida do intelecto divino é também um ato: é a luz primordial despejando luz, primeiro sobre si mesma, sua própria tocha: doadora de luz e iluminada ao mesmo tempo; o autêntico objeto intelectual, ao mesmo tempo conhecendo e conhecido, vendo por si e sem necessitar de outro para ser visto. Autossuficiente para a visão, uma vez que aquilo que ele vê é ele mesmo.” ([V 3], 8. p. 390)

Ou mais ao estilo de Espinosa, Deus ama a si mesmo, ou seja, tudo.

JAMES, William. As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix, 1995.
PLOTINUS. The Enneads. Traduzido por Stephen McKenna. London: Faber and Faber, 1930.



[1] Texto adaptado por mim visando a simplificação. (JAMES, 1995. p. 237-238)