quarta-feira, 3 de abril de 2013

A religião única


Religiões, no plural, é a forma como designamos as construções culturais em torno da experiência religiosa. Conforme o país, a época e a camada da sociedade que se agrupa ao redor de uma nova interpretação dessa experiência, surgem as doutrinas e as práticas, os símbolos e os fenômenos psíquicos correlatos que, apesar de semelhanças ocasionais, marcam as diferenças entre uma e outra religião.
As formas finitas, pessoais ou locais em que se baseiam as diversas religiões as tornam sem dúvida alguma ímpares, isoladas, únicas... Ainda assim, um senso mais íntimo – um que deve ser especificamente o senso religioso – nos causa incômodo em relação a essas mesmas definições e limites que necessariamente caracterizam a nossa fé, como a dos outros. É este senso religioso mais profundo que nos faz criticar e combater os limites de nossa própria doutrina ou comunidade, sempre que eles ponham em risco a infinitude experimentada no contato direto com a fonte de sentido da religião em geral.
Religiosos quase sempre se dividem de forma perceptível entre essa doutrina finita gestada por uma comunidade e uma cultura específicas, e a doutrina infinita e sem fronteiras que perde a capacidade e o interesse em diferenciar a minha das outras fés. E, ao passo que a manifestação religiosa culturalmente limitada é inevitável, é ao incondicionado que o instinto religioso almeja. A divisão é uma fatalidade, mas a união, a generalidade, a universalidade da religião é a meta sem a qual se perde o seu propósito.
Toda a religião singular é tão mais reprochável, tão menos útil ao progresso geral, quanto mais ela se entender como algo único, exclusivo e diferenciado; quanto menos ela entender as demais como irmãs que compartilham a mesma busca.
         Indiscutivelmente, há diferenças marcantes e radicais em algumas ou todas as tradições religiosas. As religiões hipercomplexas como Cristianismo e Hinduismo reúnem elementos aparentemente inconciliáveis como niilismo, panteísmo, politeísmo e monoteísmo, sustentando, por isso, conflitos teóricos imensos, enquanto religiões mais homogêneas como o Islã são capazes de integrar as diferenças numa quase ordem mundial, criando um tom que se destaca na sinfonia.
Judaísmo e Cristianismo produziram a mentalidade ocidental graças ao seu enfoque na história deste mundo como desenvolvimento de um mundo ideal ou transcendente. Profetas, santos e reformadores se sucedem ininterruptamente na formação de uma corrente de revelação continuada, uma estória contada por Deus.
O Budismo concentra suas forças na iluminação para fora do mundo (não em sentido ontológico, mas em sentido existencial). A realização de um reino de Deus não é crível, dada a natureza essencialmente ilusória e corrupta da existência, mas algumas versões não tão minoritárias não vêem problemas em associar a natureza búdica com Deus, e apresentar algum tipo de individualidade imortal que resiste à toda a corrupção da transitoriedade.
A parte majoritária do Islamismo prega o governo absoluto de Deus, de modo que a nós criaturas não cabe decidir quanto aos rumos e projetos, nosso livre-arbítrio servindo apenas para a nossa adequação ou inadequação ao plano de Deus, com conseqüência para a alma imortal mais do que para este mundo.
O Hinduísmo é tão variado que suas próprias subdivisões se apresentam radicalmente distintas umas das outras, sendo difícil traçar linhas gerais que as agreguem. Talvez a reencarnação e a busca pela salvação sejam os únicos elementos comuns.
Se considerarmos o materialismo e o espiritualismo holista de muitos cientistas e pensadores contemporâneos como uma espécie de religião, acrescentamos elementos muito incomuns em relação ao que em geral se classifica como tal.
            Mas toda a diferença não é senão o pensar finito, a definição de termos e elementos, “objetos” e “ações” religiosos, não aquilo em torno do qual a religião é fundada, não o pensar que se volta para o infinito. Há, portanto, um erro de princípio visceral em considerar esses elementos mais importantes do que o elemento propriamente religioso, o incondicionado, o indizível, aquilo que consideramos merecedor de respeito e devoção. Quando o denominamos Deus, deuses, a humanidade, a natureza, a vida, a força cósmica, a verdade, não estamos mais do que revelando o aspecto que nos toca em particular, mas nosso instinto religioso nos faz sensíveis aos aspectos que não nos interessam ou mesmo nos desagradam, na medida em que revelam os mesmos traços de infinitude e sentido.
            A alma religiosa jamais poderá rejeitar completamente um humanismo ateu como o de Carl Sagan, vazado por um estupor estético e intelectual diante da grandeza, complexidade e perfeição do cosmos, centrado na figura humana e na valorização de toda a forma de vida em atitude de verdadeira adoração. Por mais progressista que seja, o coração religioso nunca deixará de respeitar também e não obstante o xamanismo tribal, organizado em torno de totens e animais sagrados. Ao passo que a inteligência social ou natural enxerga uma projeção do imaginário, a inteligência espiritual – se o indivíduo tiver alguma – é tocada pela beleza e força do símbolo, do qual pode aprender tanto sobre a realidade espiritual quanto de uma doutrina mais elaborada.
A parte religiosa da constituição humana não pode ser imunizada contra o respeito e a simpatia a que nos compungem o zelo israelita, o fervor abrasivo dos muçulmanos, a disciplina adamantina dos yogis, a pulcritude budista, a placitude taoista, o amor cristão, e, porque não, a indignação justa dos materialistas quanto aos problemas imediatos da vida física, social e psicológica. Essa nossa essência religiosa nos faz admirar todos os diferentes esforços para o cultivo do que de melhor possui o ser humano, aquilo que lhe permite superar-se, que o leva a transcender os seus limites.
Ademais, enquanto religiosos medíocres, mesmo em posições elevadas em suas respectivas instituições, enfatizam sempre a diferença e a especificidade de suas doutrinas, religiosos de “elite” como os místicos e os fundadores de religião demonstram sempre um comportamento completamente distinto. Confúcio, ao ser questionado quanto ao seu conceito de homem perfeito, enfatizava que apesar de seus esforços ele mesmo ainda apresentava vícios que o afastavam desta condição, mas apontava uma série de outros indivíduos que, conquanto justos, todos consideravam menos sábios e nobres do que ele. Jesus chocava a sociedade e seus discípulos enobrecendo os “hereges” samaritanos como um povo reto aos olhos de Deus. Questionou dogmas do judaísmo e se negou sempre a estabelecer princípios, incentivando seus ouvintes a investigação da consciência. Não apenas Buda, mas Nagarjuna, Jizang, Hui Neng e uma série de sábios budistas combateram duramente noções doutrinais em favor de uma postura crítica e questionadora, muitas vezes com reconhecimento de praticantes de outras religiões como “budas” e “santos”. Rumi, místico e poeta islâmico desafiou os dogmas vigentes para acolher a ideia de reencarnação e de fraternidade com as demais religiões, louvando judeus e cristãos piedosos.
Qualquer cultura possui exemplos edificantes de diálogo inter-religioso, bem como missionários da dupla pertença, ou seja, pessoas que se consideram membros de duas religiões distintas. São inúmeros os exemplos de devotos que conciliam paganismo helênico e cristianismo, islamismo e misticismo persa, budismo e taoismo .. O hinduísmo, por sua vez, é reconhecido por sua flexibilidade e conversibilidade em termos de outras fés. Há yogis muçulmanos, budistas, cristãos, e nunca houve problemas em identificar mestres de culturas alheias como gurus iluminados.
O Espiritismo, que não é uma tradição religiosa, baseia-se na teoria tanto quanto na revelação de uma harmonia superior entre as religiões, as ciências, as filosofias e todas as demais formas de cultura e civilidade que venham a contribuir para o progresso. Desloca o foco das particularidades da crença e da organização religiosa para uma concepção universalista da espiritualidade e da religiosidade, contra os velhos impositivos das noções de religião institucionalizada. Abre a consciência para novas perspectivas, novas oportunidades iluminativas e vitaliza a fé demonstrando serem muitas as mensagens dos céus a nós caminhantes das baixadas enevoadas.
A sua apresentação pode e deve se associar à tradição cristã, com a qual nossa cultura ocidental desenvolveu profundos laços históricos, mas não deve deixar de também estender seu acolhimento e prestígio a todas as demais tradições religiosas. São também todas divinas, e também se fecharam ou cristalizaram por culpa dos erros humanos. A perspectiva de uma revelação continuada deve superar esses entraves que a sociedade impôs às revelações momentâneas. Disso depende o futuro das religiões.