segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pontos metafísicos do Espiritismo


As críticas de Kardec aos sistemas especulativos produziram uma impressão errada sobre sua postura diante da metafísica. É comum interpretá-lo como filosoficamente alinhado ao positivismo, doutrina francamente inimiga da metafísica. A maioria dos estudiosos da filosofia espírita, contudo têm como certa a separação de Kardec das correntes filosóficas de sua época, o que se justifica não apenas pela insistência no modelo próprio, que ele definia “filosofia espiritualista”, como igualmente pela ausência de um posicionamento mais claro em relação àquelas correntes então em voga. – Houve quem por isso o enxergasse como um autor avesso à filosofia.
Uma filosofia prática como a de Kardec, conforme expusemos no artigo Qual é a filosofia espírita, não precisa lançar sua própria fundamentação teórica, embora sempre pressuponha alguma. Ora, a filosofia pressuposta pelo Espiritismo jamais poderia ser a positivista. Em primeiro lugar porque o progresso no positivismo é substitutivo: da mentira para a verdade, enquanto no Espiritismo é melhorista: verdades intuídas e expressas por alegorias se confirmam e aperfeiçoam com a chegada das ciências. Em segundo lugar porque o Espiritismo acolhe explicitamente a noção religiosa de revelação. Por fim, mas não por último, porque o Espiritismo depende inteiramente de certos “pontos metafísicos”, tidos como superados pelo positivismo. Este também é um dos motivos da condenação de Kardec por parte de outros pesquisadores do espiritismo ao longo do século XIX, já que ele agredia a concepção positivista e cientificista da época ao lançar mão de elementos de metafísica que lhe permitissem formar uma filosofia geral ao invés de permanecer na experimentação física.
Kardec também declara na introdução de O Livro dos Médiuns, que antes de tornar alguém espírita é preciso fazê-lo espiritualista. Isso não nos deixa espaço para dúvidas; a filosofia de fundo do Espiritismo é o espiritualismo, doutrina essencialmente metafísica. O positivismo adere ao corpo teórico espírita como contributo metodológico ao processo propriamente científico ligado à mediunidade.
Convencidos de que o Espiritismo é filosofia espiritualista, precisamos ter diante dos olhos o quadro do espiritualismo francês de princípios do século XIX. Tratava-se de um espiritualismo genericamente amparado pela filosofia racionalista de Descartes, expandido pela meditação ética e psicológica do pensamento francês dos séculos XVII e XVIII, enamorado do Romantismo em ebulição, amadurecido pelo ecletismo e, por isto mesmo, associado às pesquisas culturais sobre religiões antigas.
A melhor forma de confirmar este diagnóstico é o levantamento dos pontos metafísicos do Espiritismo. E o primeiríssimo destes pontos é a certeza cartesiana.
Kardec pertence a melhor parte da filosofia francesa, que manteve as condições críticas da filosofia cartesiana sem recair na metafísica sistemática. Neste sentido ele está alinhado a Descartes, Pascal e Rousseau, e separado de Malebranche, Leibniz e Spinoza. A percepção de que o pensamento, como fato incontroverso da consciência, pressupõe sempre automaticamente um sujeito, apesar de extremamente sólida, constitui um posicionamento metafísico, já que o ceticismo extremo pode ainda fugir a esta conclusão.
Assim a afirmação da objetividade de um sujeito, para além de impressões epifenomenais ou vícios de linguagem, é naquela época tanto quanto hoje uma afirmação dos simpatizantes da metafísica. A diferença está apenas na predominância que esta visão tinha sobre a materialista.
Como em Descartes, o Espiritismo também se defende da ingenuidade racionalista evocando uma hipótese ético-epistemológica, a de que Deus não permitiria nosso engano em relação aos elementos essenciais do conhecimento. Com isto a fé na razão não é uma fé dogmática, mas postulada por uma esperança num Deus bom e inteligente que nos garante a saúde da razão. Em outras palavras, a razão assenta desde o princípio sobre a fé (ponto que é compartilhado pelo pragmatismo).
Incontáveis materialistas tentaram perverter esta relação identificando a “aposta razoável de Descartes” como uma recrudescência da filosofia medieval, em favor de um dogma da existência de Deus e da eficácia da razão. A fundamentação de Descartes permanece, no entanto, como pedra fundamental da filosofia moderna, sustentando duplamente a vigência da razão e a sua própria autocrítica, numa fórmula extremamente imparcial de “confiança logicamente necessária”.
A cosmologia espírita pressupõe igualmente a divisão de Descartes, por sua vez bastante platônica, entre o elemento extenso e o pensante. Mas, conforme disse certa vez meu mentor Luís Dreher: “É um erro comum atribuir a Descartes uma filosofia dualista, quando, na verdade, ele mantém um esquema de três substâncias, como todo bom jesuíta. A substância primeira é Deus, sendo as duas outras por Ele criadas e dele distintas.” Esta interpretação agrada ainda mais ao Espiritismo, que faz desdobrar de Deus o princípio material e o princípio inteligente, que podem se contrapor entre si, estando sempre, contudo,  subordinados a Deus. O que também não deixa de diluir em muito o dualismo, agora claramente unificado pelo vértice que a substância divina proporciona, resolvendo com isto inúmeros problemas metafísicos ligados à descontinuidade de um mundo dividido.
As especificidades da substância pensante e da material são também largamente expostas em O Livro dos Espíritos, sendo impossível classifica-las em qualquer outra denominação que não a de elementos metafísicos. O estudo dos argumentos de Kardec e dos espíritos demonstra também que o desenvolvimento destes pontos segue o método investigativo da metafísica tanto quanto sua definição final. Há todo um cuidado em diferenciar e contrapor propriedades ontologicamente conflitantes, unificando-as, ao mesmo tempo, em processo dinâmico de contraposição positiva. Os comentários dos espíritos parecem frequentemente abusar da dialética platônica e/ou da redução do conceito à função determinativa das coisas. Que outra forma de validar um tipo de filosofia poderia ser mais direta do que esta?
Não convém estender demasiadamente a lista, mas o Espiritismo também recorre sem reservas a conceitos absolutamente inverificáveis pela experiência e que só possuem importância especulativa. Exemplos clássicos são: mônadas, karma e o próprio períspirito (Afinal é uma terceira substância criada, ou, como parece, um ponto de contato entre a inteligente e a material?). Qualquer destes elementos é útil para a solução de problemas sistemáticos, e por isso mesmo têm sua justificação metafísica garantida, mas já não permitem mais aproximações entre o Espiritismo e o Positivismo com “P” maiúsculo, de Comte. Pode-se, quando muito, investigar a ligação entre o método de Kardec e o positivismo histórico do contexto da época.
Quanto à metafísica, ela sempre esteve presente nos trabalhos filosóficos dos estudiosos do Espiritismo, e porque o Espiritismo quer falar das causas últimas, sempre estará.