quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Kant e Kardec, mais do que o K em comum.


        Immanuel Kant, o maior de todos os filósofos da Era Moderna, tem uma recepção problemática por parte do Espiritismo. De uma lado ele atacou a metafísica das substâncias, que constitui um elemento prioritário da metafísica espírita (pense-se em fluido cósmico universal, perispírito, centros de força e coisas semelhantes), de outro lado ele fez uma crítica direta ao fenômeno da vidência, manifestado com grande alarde por outro Emanuel, o engenheiro e místico Swedenborg.
         Kant errou, como todos, em alguns pontos, mas tomá-lo por antagonista é mais do que uma má estratégia filosófica: para quem queira sustentar alguma forma de racionalismo moderno, é suicídio.
         Há boas razões, contudo, para afirmar que o uso de Kant por parte de adversários do Espiritismo é mais motivado por ignorância do que por qualquer outra justificativa, e o mesmo vale para o incômodo de pensadores espíritas em relação ao pensador de Königsberg.
         Se o mundo viu um homem imparcial nos seus julgamentos, este foi o eremita e cientista prussiano, revolucionário tardio do pensamento. Ao ouvir falar de um vidente sueco que recebia mensagens dos espíritos e se afirmava capaz de se desdobrar em viagens astrais, Kant se absteve de ambas as reações típicas dos demais seres humanos; nem condenou como louco o vidente, nem o recebeu instantaneamente como taumaturgo fantástico. Dedicou-se, ao contrário, a uma terrivelmente trabalhosa análise que objetivava aclarar a possibilidade de ocorrência de tais fenômenos, e da validade dos relatos a eles ligados. O resultado é o famoso livro Sonhos de um visionário.
         O livro, porém, não eliminou o problema. Alguns afirmavam ter visto nele a condenação definitiva do espiritualismo, pois o filósofo afirmava que tais condições jamais poderiam proporcionar conhecimento científico. Outros diziam ser Kant um defensor e mesmo um crente fervoroso nos fenômenos espirituais, já que ele afirmava serem muitos deles dignos de fé. Onde a verdade?
         A célebre frase que futuras edições colocaram na contracapa dá o tom de ambiguidade, e a dimensão do drama:

Qual Filósofo não esteve uma vez entre, o juramento de uma pessoa sensata e convicta testemunha ocular, e a resistência interior de uma dúvida inolvidável? Deve ele negar completamente a veracidade de todos os fenômenos espirituais? O que o deve conduzir aos fundamentos de sua posição acerca deste assunto.[1]
         Ao menos não se o pode acusar de não tratar seriamente a questão. O livro coleciona relatos de testemunhas dos fenômenos produzidos por Swedenborg, críticas e apologias de algumas das pessoas mais envolvidas no assunto, proporcionando grande erudição sobre o contexto da questão na época. Logo a mente sintética e crítica do pensador chega a uma definição conceitual extremamente econômica, subdividida em duas perguntas sem as quais nada se pode concluir sobre a mediunidade: 1- Qual é a natureza dos Espíritos? 2- Qual é a relevância objetiva de um testemunho pessoal, não verificável?
         O próprio Swedenborg não possuía um método, como Kardec posteriormente viria a elaborar, sendo apenas um médium muito ostensivo e homem de grande instrução. Assim, Kant não tem como colher do vidente caracteres filosóficos que lhe permitam uma confrontação. Ele é obrigado a fazer todo o trabalho filosófico "de fora", sem a presença do médium e sem condições similares que lhe favorecessem a solução das mais pequenas dúvidas. Kardec teve o privilégio de operar com condições bem mais cômodas, e somente por esse motivo já seria de se esperar que reunisse observações mais precisas que as disponíveis a Kant.
         Em suma, Swedenborg não tinha boas respostas para nenhuma das grandes questões levantadas por Kant, o que não fez com que o último desautorizasse imediatamente a doutrina do primeiro. O filósofo teve de trabalhar de maneira especulativa, usando os conceitos metafísicos vigentes de substância, alma, espírito, etc.
Em alemão a palavra para espírito, geist, significa também mente, e há um bloqueio cultural quanto a relacionar o espírito a um ser corpóreo, dotado de sensações, motricidade e localidade. Espírito é o intelecto, quando muito as memórias, e as expressões populares para aparições de espíritos são sempre interpretadas pejorativamente, relacionadas a fantasmagorias. Por isso, mas também por razões filosóficas, Kant julgava precária a definição de espíritos como seres perfeitamente corpóreos, com suas vestimentas e idiossincrasias, tais quais os relatados por Swedenborg. 
Semelhantes imagens pareciam a Kant mais compatíveis com a definição de alma, que evoca sempre noções mais ou menos materiais, embora de uma materialidade sutil, fluídica ou etérea. A conclusão sensata de Kant é a seguinte: ou os espíritos são materiais e, portanto, mensuráveis e comandados pelo princípio mecânico de causa e efeito, ou são imateriais e, assim, não há como vê-los, ouvi-los ou mesmo pensá-los, pois o que não é material não possui forma ou substância para serem apreendidas.
Pois bem, os espíritos de Swedenborg tinham forma, impressionavam os sentidos e pareciam de todo modo materiais, mas isso os colocaria na classe dos fenômenos estudados pela ciência, o que não se verificava. Caímos no problema da medição, pois como os espíritos não podem ser observados com método científico, suas aparições exclusivas a um ou outro indivíduo não podem ser confirmadas como “conhecimento”, são apenas testemunhos.
Esse julgamento é puramente epistemológico, não estabelecendo valores de bom ou mau, certo e errado ou verídico e inverídico. Dizer que algo não é científico não significa dizer que seja falso, e dizer que as pessoas não podem considerar o relato de Swedenborg como conhecimento válido, não significa desautorizá-las de crer nesse relato e viver conforme ele.
Na verdade é exatamente isto o que Kant recomenda em Sonhos de um visionário: enquadrar os relatos como testemunhos que são. Ele reconhece que muitos dos relatos de videntes são plausíveis, respeitáveis do ponto de vista moral e proferidos por pessoas do mais inquestionável caráter. Ainda assim, nada do que dizem pode ser verificado, de modo que só lhes podemos conceder ou não nosso voto de fé.
Kant conclui que, a respeito dos contatos com os mortos, deve-se proceder como em qualquer ocasião em que um indivíduo profere ter vivenciado experiências que ninguém mais teve ou pode ter. A plateia deve julgar com sua própria razão e sensibilidade a plausibilidade do relato, a idoneidade da testemunha e chegar a uma conclusão subjetiva, com valor de convicção, sobre ele. 
O filósofo tece até um exemplo alegórico bem-humorado: supõe-se que um náufrago chegasse a uma ilha deserta e lá visse coisas admiráveis. Improvisando uma jangada ele consegue escapar, mas não é capaz de dizer ao certo a localização da ilha, e outros não a puderam encontrar posteriormente. Os relatos do náufrago são sóbrios e detalhados, e ele é conhecido como ajuizado, consciencioso e honesto. Como devem proceder os ouvintes? Decerto alguns crerão no amigo, mas a ninguém ocorrerá acrescentar a narrativa aos livros de ciência.
Essa conclusão foi tida como fulminante contra as pretensões científicas do espiritismo pré-kardequiano, mas seria uma tolice temê-la ou empregá-la após o método desenvolvido pelo codificador. Aqueles que ainda hoje empregam o Sonhos de um visionário como crítica ao Espiritismo desconhecem os elementos mais básicos desta doutrina, enquanto que os espíritas que se sentem incomodados com a crítica kantiana falham em compreender o contexto, para o qual a conclusão do filósofo era corretíssima.
Médiuns houve muitos, fenômenos idem, sempre e em quantidade. Nada disso, entretanto, faz uma ciência, se não houver um cientista que organize os fenômenos segundo um método, e que os ponha à prova. Kardec foi o executor desse projeto árduo e ingrato de fundar uma ciência do oculto, ainda hoje estigmatizada, mas raramente criticada com rigor. Ele começou por duvidar, tão ou mais do que fizera Kant, dos fenômenos que se lhe apresentaram, e somente passou a tomá-los como base para sua nova ciência quanto respondeu satisfatoriamente aos dois problemas levantados por Kant.
Ao problema da substância, que desde o início atormentou Kardec, responderam os próprios fenômenos sob a força da repetição e da diversificação de experimentos. Ao princípio intelectual, que não pode responder à causalidade mecânica, nem apresentar forma ou mensurabilidade, e ao elemento material, dotado de todas estas características, observou-se o elemento intermediário que pode constituir o períspirito, um fluido ainda material, mas passivo de comando do espírito. 
As qualidades sui generis do proposto “fluido cósmico universal”, escapando das categorias dualistas da metafísica, oferece uma resposta teórica para o questionamento acerca da impossibilidade de contato entre espíritos e seres encarnados. Mas o mais interessante ainda é o fato de esse conceito ter-se desenvolvido por experimentação, não por especulação metafísica, e essa experimentação só foi possível porque Kardec resolveu o segundo problema kantiano, o da validade dos relatos dos médiuns.
Certificado empiricamente da veracidade dos fenômenos, o codificador do Espiritismo (só agora com a letra maiúscula do nome próprio) não se precipitou em declarar como ciência a sua coletânea de fatos. Elaborou uma ferramenta metodológica digna dos fundadores das ciências humanas para averiguar a universalidade dos relatos. Só assim podia eliminar a subjetividade dos testemunhos individuais dos médiuns e atingir a almejada imparcialidade para a conceituação dos fenômenos espíritas e das ideias que os espíritos por eles transmitiam. A ciência material dos fenômenos físicos e psicológicos produzidos pelos médiuns foi amplamente reproduzida desde a época aos dias de hoje, mas a ciência pura proporcionada unicamente pelo controle universal do ensinamento dos espíritos, e que produziu um verdadeiro sistema crítico para a comunicação com o outro mundo, é o traço peculiar dos esforços de Kardec.
Há, portanto, duas ciências espíritas, uma localizada entre a física e a psicologia, pertinente aos fenômenos mediúnicos, e uma outra que se aproxima das ciências sociais, ainda que inteiramente diferenciada, pertinente aos processos de controle estatístico e crítico das ideias apresentadas pelos espíritos.
Não há como saber qual o grau de familiaridade de Kardec com as críticas de Kant, mas estas últimas são inteiramente compatíveis com os padrões de qualidade e inovações metodológicas apresentadas por Kardec. Não havendo outra crítica igualmente precisa do Espiritismo como método científico, estamos a aguardar de seus opositores análises tão judiciosas quanto a de Kant.


[1] Imanuel KANT. Träume eines Geistersehers. Pg. 5.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A lucidez do pragmatismo americano


           O final do século XIX parecia trazer grande desesperança para os filósofos. Os especialistas e sábios dividiam-se entre a metafísica idealista ou romântica, esta última influenciada pelo darwinismo e dando origem ao vitalismo moderno, e, de outro, um completo niilismo marcado pela desesperança na razão e adoção de um materialismo cínico aos moldes de Nietzsche e Marx. Filosofia, num sentido estrito, não havia, pois ao lado desses modelos estéticos e elaborados com o maior rigor lógico carecia-se da postura imparcial necessária ao fazer filosófico.
         A fabulosa conquista da perspectiva transcendental de Kant havia se engessado em uma metafísica dogmática após a morte de Hegel, o último descendente de Kant a fazer filosofia ao invés de defendê-la como bandeira ideológica, e as primeiras brilhantes intuições de Nietzsche, que o levaram a questionar a cultura ocidental de uma forma nunca antes imaginada, acabaram não sendo levadas por ele mesmo à condição de proposição útil à renovação do pensamento; seu trabalho se resumiu lamentavelmente aos aspectos destrutivos do que ele mesmo definia “filosofar com o martelo” ou aos floreios poéticos que enchem os olhos do estudante, deixando na mesma o pesquisador.
         Neste cenário um tanto quanto negativo surge a filosofia vigorosa da nova cultura gestada entre Boston e Chicago, nas palavras de William James “um novo nome para uma velha forma de pensar”: o pragmatismo.

William James, considerado por muitos o primeiro grande pensador das Américas.

         A cultura americana, ou melhor dizendo, do nordeste dos Estados Unidos, no período pós a guerra civil era em todos os aspectos estuante. O país deu em cinquenta anos uma arrancada da periferia para o topo da economia mundial, o que não deixou de ser acompanhado por um crescimento tecnológico, científico e humanístico igualmente impressionante.  As universidades americanas se dividiam, em matéria de filosofia, entre a replicação do utilitarismo inglês e a replicação do idealismo germânico conforme propagado na Grã-Bretanha. Filosofia nacional era um termo inaplicável antes de 1880, embora já houvesse uma percepção geral de que um modo de pensar tipicamente americano estaria já presente nos inspiradores da República.
         William James foi um dos responsáveis pela materialização da forma arrojada de pensar que caracterizaria teoricamente o que na prática tão bons resultados produzia: o empreendedorismo, a liberdade, a representatividade e o espírito objetivo da cultura americana.
         Ninguém o teria feito melhor que James, pois poucos indivíduos reúnem o gênio à mais completa educação disponível em seu tempo, ambos necessários ao trabalho que viria a iniciar. Vindo de uma família de intelectuais espiritualistas, teve desde cedo contato com a alta cultura e com uma fé profunda na liberdade religiosa e intelectual. Seu pai, conhecido adepto do swedenborguianismo, transmitiu-lhe uma abertura inusitada para as questões metafísicas e espirituais; os estudos de filosofia feitos na Alemanha lhe deram segurança no trato dos mais difíceis problemas conceituais da época; sua formação como médico na tradição inglesa, finalmente, propiciou-lhe um senso empírico impecável. Mas não foi a nenhuma destas inclinações que ele dedicou a parte principal de suas reservas psíquicas, senão à psicologia, o campo desconhecido e controverso por excelência, que antes mesmo de Freud abarcava praticamente tudo o que há do esoterismo à anatomia cerebral, da filosofia sensualista à estética transcendental de Kant. James foi um dos poucos a assumir a estafante tarefa de pôr ordem a este amplo universo, e o que melhores resultados apresentou em língua inglesa.
         Pragmatismo ou empirismo radical era a forma como James definia a sua “velha forma de pensar”, nomes que também eram empregados por Peirce e Dewey, embora com conotações e agendas completamente distintas. O diferencial dessa filosofia era a intenção de escapar do problema dos pressupostos, um problema lógico gravíssimo que ronda toda a filosofia desde sempre, e que se apresentava especialmente incômodo na época, dividida entre as metafísicas e o ceticismo dogmáticos.
         Comicamente James propôs uma revolucionária solução após participar de uma discussão de acampamento a respeito de um esquilo. O grupo de amigos dividia-se em duas facções munidas de argumentos filosóficos com distintos graus de seriedade. O caso em questão: um colega que havia tentado encarar um esquilo preso a uma árvore. O esquilo corria sempre para o lado oposto, evitando o inconveniente rapaz, que tinha sempre o tronco entre ele e o animal, sem lograr alcançá-lo, apesar de circundar completamente a árvore O problema que surgiu entre os amigos foi o de saber se o rapaz circundou o esquilo. Um grupo afirmava que o esquilo, embora circundando a árvore, havia sido por sua vez circundado pelo rapaz como num par de círculos concêntricos. O segundo grupo afirmava que, estando o esquilo sempre do lado oposto ao do rapaz, este jamais teria sequer alcançado, quanto mais circundado o esquilo.
         Com a chegada do sábio o grupo o incumbiu de solucionar o enigma, e James partiu para a desambiguação. Há duas perspectivas simultaneamente corretas e contraditórias. A primeira estipula a noção de circundar como ato de estar a norte, depois a leste, depois a sul, depois a oeste e finalmente de novo ao norte do esquilo. Neste sentido ele foi circundado. A segunda perspectiva é a de ter o esquilo à sua frente, depois à direita, então por trás, à esquerda e finalmente de novo à frente. O rapaz não efetuou a circunvolução neste sentido. Ou seja, James transferiu o problema lógico para o da definição; naquele a contradição era insolúvel, neste é legítima, mas irrelevante.
         A grande ideia do pragmatismo é a de que a verdade não depende de uma essência metafísica ou fórmula lógica, e sim da perspectiva segundo a qual as ideias são formuladas. Trata-se de um relativismo, mas um muito diferente do que se pratica vulgarmente. Verdades contraditórias podem coexistir, sem que, ao final, as coisas sejam indiferentes.
         Na questão do esquilo os grupos se dividiam entre duas noções de espaço, uma absoluta, com o esquilo circundado, e uma subjetiva, com o esquilo mais astuto que seu perseguidor. James negou ambas as posições filosóficas clássicas e relativizou o espaço segundo os critérios ditados pelos “interesses” dos dois grupos.
O pragmatismo ganha daí o seu nome. A verdade é o que ela significa na prática, e por trás disto não há uma verdade absoluta, ao menos nenhuma que o homem possa captar. Com isto se satisfaz os céticos, pois nenhuma verdade é pressuposta dogmaticamente, sem que se percam as verdades instrumentais necessárias à vida, que é o problema do ceticismo irredutível. A verdade relativa do pragmatismo é, portanto, uma verdade válida, uma certeza conveniente que deve ser sustentada para critérios práticos.
Para sentir o peso dessa revolução vamos criar um cenário fictício.
O cético e o metafísico passaram séculos numa discussão a respeito de Deus.
Deus existe _ afirma o metafísico_ porque é um ser necessário. A ordem do mundo não funciona sem ele. Além disso, nossa vida moral também exige um juiz absoluto, sem o que o mal não seria compensado ou punido, e o bem seria a menos compensadora das opções.
O cético replica _ Nossa vida moral pode ser fruto de interesses egoísticos e ilusões sociais, neste caso a garantia da moral não faz qualquer sentido, pois ela mesma é efêmera. Nosso olhar sobre o cosmo também pode estar essencialmente errado, de modo que a lei e a ordem que enxergamos não signifique nada no universo em-si.
Antes que a discussão se alongue indefinidamente o pragmatista intervém. _ A verdade ou as verdades desta questão não podem ser definidas de imediato, pois tanto nossa razão quanto nossa experiência são limitados demais. Tudo o que podemos fazer é confiar numa perspectiva razoável, adotando-a por convicção, e modifica-la quando ela se mostrar infrutífera. Se Deus responde às nossas necessidades de um arquiteto cósmico, convém afirmar sua existência como verdadeira para critérios de compreensão do cosmo. Se duvidar da harmonia universal nos ajuda a eliminar a ingenuidade no campo científico, duvidemos dela e de qualquer outro princípio de segurança, e em suspendendo todas as noções metafísicas conseguimos, de fato, enxergar com novos e mais desanuviados olhos a realidade que se mostra. Vocês estão ambos corretos, pois a existência ou inexistência de Deus serve aos propósitos dos dois.
Isto é uma desonestidade! _ trovejam os velhos espíritos da filosofia em uníssono. _ Seu arbítrio nos deixou na mesma, e não inaugura critério algum para decidir o que é verdadeiro. A verdade é o que te convém em cada circunstância.
Não, não, meus amigos. O pragmatismo aceita como verdade o que funciona, não apenas o que convém aos distintos indivíduos. Vamos apenas tomar ambas as perspectivas como válidas enquanto não houver meio de bater o martelo, mas a experiência segue correndo, e vamos observar como a realidade responde às nossas verdades, qual delas produz mais e melhores frutos, quantas outras verdades se associam a cada partido e quantas pessoas encontram sentido nesta ou naquela perspectiva. Se em algum momento a vida decidir a controvérsia, um dos partidos deverá ser extinto. Assim como na ciência, a filosofia deve subordinar-se ao progresso e à refutação de suas teorias.
Mas então _ declaram novamente ambos _ a filosofia jaz devorada pela ciência.
Mais uma vez não, pois onde a ciência para a filosofia segue desinibida. O método é semelhante ao da ciência, mas o objeto radicalmente diverso, e assim também a avaliação. Uma verdade funcional pode não gerar qualquer efeito mensurável ou objetivo, mas apenas efeitos subjetivos, emocionais ou ideais. Uma pessoa diz que sua religião a conforta na dor, a outra jura que um ritual lhe deu coragem, um terceiro confirma que a arte transformou-lhe a vida. São alegações desprovidas de sentido para a ciência, mas que podemos qualificar filosoficamente como verdades válidas, funcionais. E o teste dessas verdades não será feito pela ciência, e sim em foro íntimo por cada consciência ao longo da vida.
De fato é uma visão diferente, _diz o metafísico_ mas prefiro continuar com a minha. Estou convicto de que a razão é capaz de desvendar verdades essenciais, não apenas estas funcionais. Acho que vocês dois estão errados.
Também admiro tua inovação, pragmatista, _completa o cético _ e permaneço, contudo, igualmente na dúvida metódica que me parece melhor do que esta aceitação de “verdades convenientes”.
Aí também o pragmatismo se diferencia do dogma e da dúvida, _conclui o pragmatista _ pois esta perspectiva não exclui as outras. Para que o ceticismo esteja correto, é preciso que todas as certezas sejam abolidas, e para que a metafísica esteja correta, é imprescindível que toda a dúvida seja superada. Nós temos ao mesmo tempo certeza e dúvida, mas ambas estão numa tal tensão que é impossível a realização completa de qualquer uma delas. Tanto o cético quanto o metafísico pode estar com a razão, numa proporção maior do que a nossa. O pragmatismo não é um espaço intermediário, ele se põe fora da questão, como juiz da luta, não como participante. Essa é uma posição confortável e privilegiada, mas nos impede de concorrer ao troféu da vitória. Nós regulamos o método, mas cada um segue suas intuições entre dúvidas e certezas. Um de vocês deve vencer, ou talvez ambos lutem eternamente, e eu estou aqui apenas para evitar que haja trapaças e confusões no embate.
***
Como se vê, a virada pragmatista traz interessantes elementos para a revitalização do pensamento em geral. Estando extremamente próximo da ciência, ajuda-nos a evitar uma filosofia que, pelo distanciamento dos dados positivos, se desmoralizasse em face da cultura estabelecida. Ao mesmo tempo, o pragmatismo oferece um tratamento sério e em primeira mão das questões metafísicas, éticas, psicológicas e religiosas, impedindo que o reducionismo científico e/ou materialista desqualifique a concretude destes aspectos da vida humana.
Embora tendo relativamente poucos adeptos declarados, foi uma das escolas de maior impacto sobre o pensamento do século XX em diante, com amplas consequências em pensadores como Popper e correntes como a analítica, que bebem da fonte pragmatista praticamente sem o reconhecer.
O pragmatismo é o substituto crítico, aperfeiçoado e aprofundado do positivismo, no sentido de se oferecer como filosofia compatível com a mentalidade científica. Os positivistas liberais, ecléticos e moderados se assemelham na íntegra à índole pragmatista. E com isto chegamos a conclusão de que um estudo mais atual do programa científico-filosófico de Kardec deveria se haver com o seu símile posterior, o pragmatismo.


Obs: Para conhecer o pragmatismo todas as obras de William James são recomendadas, mas as que tratam mais diretamente do método são: Pragmatism e The meaning of Truth.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Qual é a filosofia espírita?


       Da compreensão geral de que o Espiritismo é ou tem uma filosofia surge a necessidade de explicitá-la. Os seus adeptos reproduzem com acerto os seus aspectos filosóficos, e os separam com habilidade adquirida pelos estudos kardequianos daqueles outros científicos e religiosos. E também o caráter filosófico de uma doutrina qualquer é sempre mais discernível e menos controverso do que um seu possível elemento científico. Essas são razões pelas quais se fala numa filosofia espírita com alguma segurança.
         Entretanto, a academia possui no que tange à filosofia não menos exigências e regras do que às que competem à prática das ciências. Afinal, então, o que é e como se sustenta a filosofia espírita? Tentaremos mais problematizar do que responder a este questionamento.
         Do ponto de vista da filosofia como especialidade, o Espiritismo apresenta-se como filosofia popular, o que equivale a dizer, como razão argumentativa, mas não fundamentadora. Esta qualificação não precisa ser pejorativa, e mesmo algumas das melhores filosofias tiveram um cunho acentuadamente popular, como em Voltaire, Rousseau e Nietzsche. É também uma visão filosófica válida e oficial a de que a razão já está desde sempre em jogo com seus problemas específicos, e não pode ou não requer fundamentação. Ainda assim, a maior parte do que se produziu sob o título de filosofia na história humana destinava-se à fundamentação do conhecimento ou de julgamentos sobre questões de valor.
         São mentes analíticas e interessadas na fundamentação das certezas a de Platão, a de Descartes, a Locke e a de Kant, alguns, portanto, dos maiores filósofos. Segundo estes, a atividade filosófica não se faz propriamente sem o esforço exaustivo de sua própria crítica, de modo que qualquer filosofia digna do nome ou vai até as últimas consequências ou compra um método que já o tenha feito. Os bons filósofos populares o são por seu interesse prático (moral ou político), sem que dispensem o concurso de uma boa base metodológica. E se Kardec foi um bom filósofo popular, o que acreditamos razoável afirmar, devemos encontrar em sua prática os princípios de algum ou alguns filósofos mais analíticos, para não dizer sistemáticos (nome que à época não soava bem).
         O primeiro indício de que Kardec não é um filósofo sistemático está em ele lançar mão de múltiplos conceitos e axiomas sem os justificar. Semelhante atitude pode significar, como dito, tanto o descompromisso com a filosofia quanto uma adoção prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos. E não há a mais remota dúvida de que os conceitos e axiomas pressupostos por Kardec correspondem à visão eclética do saber filosófico de princípios do século XIX. Em primeiro lugar porque todos esses pressupostos pertencem à ala ortodoxa da filosofia francesa, requerendo assim pouca ou nenhuma exposição sistemática; em segundo lugar porque essas conquistas em especial eram classificadas como conquistas da ilustração e todos os autores da época estavam habituados a assumir os elementos deste grande edifício eclético e enciclopédico como ponto de partida. Pensadores tão importantes como Benjamin Constant, Madame de Staël e Tocqueville jamais se preocupam, assim como Kardec, em fundamentar o conceito de razão, ou analisar a constituição metafísica da liberdade. Ao invés disto eles os tomam do poço da filosofia iluminista e os aplicam com habilidade de filósofos práticos aos seus interesses.
         Para elencar alguns dos pressupostos essenciais da classe ilustrada francesa e/ou européia dos anos 1800 a 1840 podemos citar resumidamente:
1-                             A fundamentação do pensamento por Descartes, com a respectiva separação entre o princípio pensante do princípio material, a constituírem os modos de ser.
2-                             A ideia platônica de que a matemática corresponderia ao modus operandi da natureza. Noção renascentista que foi solidificada por Galileu, Bruno e Descartes.
3-                             O atomismo de Diderot, que copiando Demócrito e Epicuro postulou todas as leis da física como consequências das leis que regem as partículas elementares.
4-                             A noção de liberdade como direito garantido por Deus, uma ideia cristã que se desenvolveu em séculos de teologia e filosofia, casando-se com as noções gregas de liberdade e culminando no axioma da liberdade humana conforme Locke, Voltaire e Rousseau.
5-                             A positividade da experiência como fundamento do saber, desenvolvida por Comte e imediatamente diversificada e adaptada por inúmeros pensadores e cientistas.

Poderíamos citar outros pontos, mas isto só aumentaria o volume de uma defesa que consideramos suficientemente estabelecida.
Está claro ao filósofo contemporâneo que a segurança de algumas dessas pressuposições foi duramente abalada, durante o próprio século XIX e especialmente no XX. O item mais controverso hoje é o da equivalência entre matemática e natureza, ainda defendida com certa ingenuidade por muitos físicos e francamente proibida pela filosofia da ciência. O que se pode dizer hoje com sobriedade filosófica é que haja alguma correspondência entre as leis que postulamos matematicamente e o funcionamento da natureza, mas precisar a exatidão desta correspondência seria considerado uma postura dogmática.
 Basta, contudo, o conhecimento do contexto histórico para lembrar que a nova filosofia responsável por questionar as certezas iluministas é de matriz alemã, e não estava plenamente acessível aos franceses da primeira metade do século XIX. Apesar de estar entre os poucos falantes de alemão da sociedade francesa da época, Allan Kardec provavelmente compartilhava da crença geral de seu povo a respeito dos germanos: a de se tratarem de um povo grosseiro recém chegado às raias da civilidade e que ensaiava suas forças intelectuais numa filosofia prolixa, mas essencialmente infrutífera.[1]
         O posterior sucesso da filosofia alemã, com todo o seu aparato crítico, com a restauração da metafísica pelo Idealismo e com as reviravoltas teológicas, marcou para sempre a face da filosofia, um fenômeno que o orgulho francês ainda digere com atraso, apesar da grande influência de autores como Kant e Hegel sobre os franceses.
         A filosofia sistemática viu sua tocha ser cedida da França para a Alemanha, e desta para o mundo globalizado do pós-guerra. Resta saber em que medida isto depõe contra as filosofias práticas e populares.
         Neste particular uma comparação entre Kardec e os outros filósofos populares franceses é indispensável. A maioria deles, exatamente por ser popular, sofreu minimamente com a transformação da filosofia sistemática, e a popularidade dos pensadores políticos e religiosos, dos psicólogos e moralistas franceses continuou tão irretorquível sob a luz dos sistemas alemães como quando em seu terreno natural do Iluminismo autóctone.
         Redefinidos os fundamentos dos conceitos de razão e liberdade, sobre bases mais críticas e rigorosas, continuaram a viger na esfera prática as conclusões e intuições sóbrias que a análise social e psicológica francesa ou inglesa haviam efetuado em dois ricos séculos de modernidade.
        A filosofia atual se esforça por refinar a fundamentação metafísica e epistemológica da razão, de Deus, da liberdade e da relação entre sujeito e objeto, etc., mas no campo prático e popular a maioria dos postulados iluministas continua a viger como moeda válida de interpretação dos fenômenos naturais e sociais. Em muitos aspectos, mudaram os caminhos, mas permaneceram os resultados da filosofia. É bem mais ingênuo ver algo de “errado” em Platão, por incompatibilidade de seus métodos com os recentes, do que dispensar os métodos recentes na apreciação de trabalhos filosóficos pregressos; e a história da filosofia continua a ser fonte de inspiração principal para os que pretendem reelaborá-la com vistas ao futuro.
         Qual é, então, a base filosófica do Espiritismo, se o ecletismo espiritualista francês e o positivismo que o constituíram estão agora em cheque? Precisamente a mesma base que continuou a sustentar as outras filosofias práticas e populares após a substituição da Ilustração francesa, seu ecletismo e positivismo, pela filosofia crítica alemã.
Procurai então os defensores de Pascal, Voltaire, Rousseau, Staël e Tocqueville, e achareis o caminho para sustentar em linguagem atualizada aqueles mesmos pressupostos que fomentam o método kardequiano. E os caminhos para essa revisão técnica da filosofia espírita podem ser muitos, como muitas são as correntes mais recentes.  O pragmatismo de James, a filosofia liberal e crítica de Popper e mesmo uma forma revisada da analítica existencial de Heidegger, como foi intentado por Herculano Pires, podem ser boas soluções.
       Particularmente, acho que a forma mais apropriada de releitura técnica da filosofia espírita seja a partir da Metafísica da Subjetividade, uma variante eclética que se apropria de praticamente todas as outras correntes contemporâneas numa forma ao mesmo tempo clássica e crítica da metafísica, permitindo a validade dos conceitos-chave de Deus, imortalidade, razão e liberdade.


[1] Veja meu texto sobre Madame de Staël e o “descobrimento” da Alemanha:  http://www.portalsophia.org/textos/stael/allemagneschubert.pdf