sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Lamennais e Kardec II


   Figurando entre os pais do socialismo, Lamennais abstinha-se das utopias da economia planejada e do monopólio do Estado sobre os destinos individuais, defendendo a dignidade dos esforços da livre iniciativa.
        É assim que nosso padre combate as utopias do estado paternal dos socialistas utópicos com a mais forte defesa da liberdade. Seu aviso parece prenunciar a escravidão do “socialismo” aplicado por ditaduras como a soviética e a chinesa:
Não vos deixeis enganar por palavras vãs... A liberdade não é um cartaz que se lê na esquina. É um poder vivo que se sente em si e ao redor de si... O opressor que com seu nome se encobre é o pior opressor. Une a mentira à tirania, e a profanação à justiça... Sois vós que quem escolheis os que vos governam, os que vos ordenam que façam isto e não aquilo? E se não sois vós, como sois livres?
Podeis exercer o vosso culto sem serdes perturbados, adorar a Deus e servi-lo em público de acordo com vossa consciência? E se não podeis, como sois livres?
Podeis dispor de vossos filhos como bem entenderdes, confiar a quem vos agradar o cuidado de instruí-los e formar seus costumes? E se não podeis, como sois livres?
Os próprios pássaros do céu e os insetos reúnem-se para fazer juntos o que nenhum deles poderia fazer sozinho. Podeis vos reunir para juntos tratar dos vossos interesses, para defender vossos direitos?
Podeis, ao deitar-vos à noite, estar certo de que ninguém virá durante o vosso sono vasculhar os lugares mais secretos da vossa casa, arrancar-vos do seio da vossa família e jogar-vos no fundo de uma masmorra, porque o poder em seu medo desconfiou de vós? E se não podeis, como sois livres?
A liberdade brilhará sobre vós, quando, à força de coragem e perseverança, vos libertardes de todas estas servidões.
A liberdade brilhará sobre vós... quando, para vos tornardes livres, estiverdes prontos a tudo sacrificar e sofrer.
A liberdade brilhará sobre vós quando, ao pé da cruz na qual Cristo morreu por vós, jurardes morrer uns pelos outros.[1]

        Quantas desgraças não poderiam ter sido evitadas no século XX, e ainda hoje, se os pseudosábios atentassem a essas palavras ao invés de beber o vinho da revolução? Que decepção para os cristãos verdadeiros que impulsionaram o ideário socialista do século XIX, ao descobrirem da pátria dos espíritos que suas ideias não vingaram sequer entre os fiéis, pois os agito e o imediatismo de Marx, Che e Lênin falaram mais alto às paixões ávidas de sangue da multidão. Tudo porque no espírito partidário os socialistas imaginaram dever tudo sacrificar por uma justiça que se alienou das conquistas igualmente sagradas da liberdade.
        Ainda contra as utopias de um estado “padrinho”, liderado por intelectuais que “sabem o que é melhor para o povo”, escreveu o nosso padre:
O povo é incapaz de atender aos seus interesses; para seu bem deve ser mantido sempre sob tutela. Não cabe aos que detêm as luzes conduzir os que carecem de luz? Assim fala a multidão de hipócritas que quer conduzir os negócios do povo e engordar com a substância do povo.
Sois incapazes de administrar a pequena propriedade comum, incapazes de saber o que é bom ou ruim, de conhecer as vossas necessidades e supri-las; e, por isso, enviam-vos homens bem pagos, à vossa custa, que gerirão vossos bens segundo lhes convier...
Sois incapazes de discernir a educação adequada para vossos filhos; e por amor a vossos filhos, eles os lançarão em cloacas de impiedade e maus costumes. (O autor se refere aqui ao sistema público de ensino, que na época pregava o positivismo, o materialismo e o desprezo das antigas tradições associadas à religião. Ele temia o monopólio do ensino pelo Estado tanto quanto pela Igreja, considerando que uma única instituição jamais deveria deter a totalidade dos meios de instrução)
Se o que diz essa raça hipócrita e ávida fosse verdade estaríeis bem abaixo dos animais, pois estes sabem tudo o que, segundo eles, não sabeis...
Existem animais estúpidos que são fechados em estábulos e alimentados para o trabalho... Existem outros que vivem nos campos em liberdade, que não é possível domar para a servidão, que não se deixam seduzir por carícias enganadoras, nem vencer por ameaças ou maus tratos.
Os homens corajosos assemelham-se aos últimos; os covardes são como os primeiros.[2]

        Assim termina nosso estudo da doutrina social de Lamennais. Estando de todos os lados e de nenhum, não assusta que Lamennais tenha terminado com mais desafetos do que afetos. Os socialistas o consideraram liberal demais, estes últimos o tinham por socialista, a Igreja o considerou um herege, e os materialistas um fanático. Não tinha mesmo como vingar uma doutrina política tão apartidária e tão humana quanto a de Lamennais.
        Sua veia profética, a qual nos dedicaremos agora, está na mais perfeita sintonia com seus trabalhos políticos, já que sua visão do apocalipse, do advento do consolador e da divisão do joio e do trigo eram essencialmente visões de uma reforma da sociedade, com o fim do absolutismo, a vitória da democracia e do estado de direito.
        Enquanto o pensador político reúne em si o liberalismo e o socialismo, a responsabilidade pessoal e a necessidade de reforma institucional, também o pensador religioso parece empreender a difícil síntese entre a ética e a profecia, o anúncio dos novos tempos e o estudo da natureza humana.
        A alegoria número um arranca o leitor de sua vida comum, de seu ambiente monótono ou irritadiço, para lançá-lo em mundo mágico inteiramente desconhecido.
Que aquele que tem ouvidos ouça, que aquele que tem olhos, abra-os e observe, pois os tempos se aproximam. (...)
O Filho prometeu enviar o Espírito consolador, o Espírito que procede do Pai e dele, e que é seu amor recíproco: ele virá e renovará a face da terra, e será como uma segunda criação.
Há dezoito séculos, o Verbo espalhou a semente divina, e o Espírito Santo a fecundou. Os homens viram-na florescer, saborearam alguns de seus frutos, frutos da árvores da vida de novo plantada na pobre morada dos homens.
Digo-vos que entre eles foi grande o júbilo quando viram a luz surgir, e todos sentiram-se penetrados pelo fogo celeste.
Hoje a terra tornou a ser tenebrosa e fria.
Nossos pais viram o sol declinar. Quando ele desceu por trás do horizonte, toda a raça humana estremeceu. Depois houve nesta noite algo que não tem nome. Filhos da noite, o poente está negro, mas o oriente começa a aclarar-se.[3]

          Essa passagem de tom familiar às profecias espíritas contidas em A Gênese de Karde nos dá a entender o porquê de ter sido chamado Lamennais a falange do Consolador, mal havia esfriado seu corpo no túmulo. Está aí um bom exemplo da universalidade da mensagem espírita, intuída duas décadas antes por Lamennais.
        Na alegoria vinte e seis o filósofo já nos desvela uma parte do mundo espiritual que tem diante dos olhos. Parece haver dois mundos, em cuja fronteira Lamennais transita sem dificuldades:
O que os vossos olhos veem, o que as vossas mãos tocam, não passam de sombras, e o som que atinge os vossos ouvidos não passa de eco grosseiro da voz íntima e misteriosa que adora, e ora, e geme no seio da criação.
Pois toda a criatura geme, toda criatura está em trabalho de parto e esforça-se por nascer para a vida verdadeira, por passar das trevas a luz, da região das aparências para a das realidades (referência óbvia a Platão)
Esse sol tão brilhante, tão belo, não passa de roupagem, de emblema escuro do verdadeiro sol que ilumina e aquece as almas. (sol das almas é um conceito de Fénelon)
Esta terra tão rica, tão verdejante, não passa de pálido sudário do natureza: pois a natureza... Sob esse espesso invólucro do corpo, assemelhai-vos ao viajante que, à noite na tenda, vê ou acredita ver fantasmas passando.
O mundo real está velado para vós. Aquele que se retira para o fundo de si ali o entrevê como algo longínquo. Poderes secretos, que nele dormitam, despertam por um momento, erguem uma ponta do véu que o tempo retém com a sua mão enrugada, e o olho interior encanta-se com as maravilhas que contempla.
Estais sentado à beira do oceano dos seres, mas não penetrais em suas profundezas.[4]

        Já não há mais dúvidas. Lamennais está mais do que habituado aos transportes extáticos de Paulo, Plotino e Teresa. Ele não apenas vislumbra o mundo espiritual, mas viaja por ele como Böhme e Swedenborg. Ao chegarmos ao fim do livro, e encontrando a revelação de sua experiência mística, entendemos melhor a fonte de suas profecias:
E a pátria me foi mostrada
Fui arrebatado para acima da região das sombras e eu via o tempo carregá-las com velocidade indizível através do vazio. Eu subia e continuava subindo; e as realidades, invisíveis aos olhos da carne, apareceram para mim, e ouvi sons que não tem eco neste mundo de fantasmas.
E o que eu ouvia, o que via, era tão vivo, minha alma captava tudo com tamanho poder que me parecia que tudo o que eu anteriormente acreditara ver e ouvir não passava de vago sonho noturno.
O que direi, pois, aos filhos da noite, e o que eles conseguem compreender? Vi como um oceano imóvel, imenso, infinito, e nesse oceano, três oceanos: um oceano de força, um oceano de luz,  um oceano de vida; e estes três oceanos, interpenetrando-se sem se confundir, formavam um único e mesmo oceano.
E essa unidade era Aquele que é... E esses três eram um, e esses três eram Deus, e eles abraçavam-se e uniam-se num santuário impenetrável da substância uma... E nas profundezas desse oceano infinito do ser, nadava, flutuava e dilatava-se a criação: tal como uma ilha que dilatasse incessantemente suas margens em meio a um mar sem limites.
E eu via os seres encadeando-se aos seres e produzindo-se e desenvolvendo-se em sua variedade inumerável, abeberando-se, nutrindo-se de uma seiva que jamais se esgota, da força, da luz e da vida d’Aquele que é. 
Livre dos entraves terrestres, eu ia de mundo em mundo, assim como aqui embaixo o espírito vai de um pensamento a outro pensamento; e sentia o que é a pátria; e embriagava-me de luz, e minha alma, carregada por ondas de harmonia, adormecia sobre as ondas celestes, em um êxtase inenarrável.
E depois eu via o Cristo à direita de seu Pai, radiante de glória imortal. Santo, Santo, Santo é aquele que destruiu o mal e venceu a morte.
E o Filho inclinou-se sobre o seio do Pai, e o Espírito cobriu-os com sua sombra, e houve entre eles um mistério divino, e os céus em silêncio estremeceram.
       
          Por conta de Palavras de um homem de fé e outros escritos, Lamennais angariou o ódio declarado de seus mais íntimos amigos e de seu irmão. Interpelado inúmeras vezes pela santa Sé, acabou esgotando sua enorme paciência, e finalmente abdicou da interminável mea culpa, desligando-se de suas funções sacerdotais para viver exclusivamente como escritor. Nesse campo, contudo, era ainda mais detestado e perseguido pelos monarcas, a quem tão ferrenhamente combatia, e em seus quase sessenta anos de idade, o que na época e com uma vida agitada era uma avançadíssima conta, foi premiado com um ano de prisão
        Apesar do abatimento da saúde, dirigiu publicações a partir do cárcere. Após o término da pena, dedica seus últimos anos a uma tradução da Divina Comédia de Dante, a Assembleia Constituinte de Paris e a exercícios parlamentares, morrendo em 1854.
        Napoleão III intercede para que o enterro seja rápido e secreto, buscando evitar a comoção popular. Desaparecia do mundo um dos pouquíssimos homens que conseguiu ungir-se de santidade no século das afetações.
        É impossível que Kardec não estivesse muito familiarizado com as ideias de alguém tão popular e controverso em sua própria época. Foi certamente um missionário que abriu caminho para renovação social e religiosa, com o que continuou a contribuir cinco ou seis anos após o falecimento, integrando a falange do consolador e respondendo por uma parte significativa das comunicações das obras básicas e da Revista Espírita.
        Nossos artigos sobre Pascal, Rousseau e Agostinho demonstram bem o método que propusemos para este estudo comparativo, de modo que achamos desnecessário elencar as comunicações de Lamennais como espírito. Terminamos aqui a série filósofos e Kardec, embora outros pudessem ser inseridos. Nosso objetivo era apenas o de endossar os paralelos entre o pensamento desses autores em vida e os que eles expressam em ditados espirituais, além de confirmar se suas vidas práticas respondem aos critérios da autoridade moral que se exige de espíritos mentores.
        No caso de Lamennais, como nos outros, parece não haver dúvida quanto a afinidade de ideais e posturas entre o homem e o espírito.

Bibliografia:
LAMENNAIS, Félicité de. Palavras de um homem de fé. São Paulo: Martins fontes, 1998.



[1] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 55.
[2] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 57.
[3] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 3.
[4] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 71.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Lamennais e Kardec I


     
     
        O interesse dos espíritas por Félicité de Lamennais deve ser máximo. Primeiramente por tratar-se de um dos espíritos que mais se comunicou com Kardec; em segundo lugar por ter sido em vida o exemplo do cristão perfeito. Sem o brilho de Pascal ou Fénelon, Lamennais teve a vantagem de não se contaminar por doutrinas estranhas e de época. Teve a sorte de vir após o Iluminismo, e com isso sua obra está livre de todos os laivos de ortodoxia, dogmatismo e superstição, despontando, contudo, um acentuado teor místico e até profético, ao estilo do Velho Testamento e do Apocalipse.
        Personalidade humílima, debatia em público como um político. Engajado em ataques intermitentes contra a Igreja, a sociedade e o Estado, não apresentava a altivez e a dureza de quem se habituou ao combate mais aguerrido.
O sereno agitador
      
         Lamennais nos lembra as personalidades inconfundíveis de Paulo, Huss e Gandhi. Transformadores avessos à revolução, inimigos do erro, mas jamais indispostos contra pessoa alguma, combateram o mal sem odiar os maus.
          Sua vida jamais foi fácil. A cada instante este homem simples e bondoso enfrentou decepções amaríssimas e fracassos que fariam revoltar o homem comum. A juventude foi melancólica, mas não por ressentimentos pessoais, senão porque as injustiças sofridas pelos outros lhe torturavam. A ideia de que os pobres careciam de proteção do Estado era-lhe um pensamento obsessivo. Contemporâneo de Marx, foi também socialista, mas de uma muito distinta estirpe. Sem apologias à revolta armada, e alheio à filosofia materialista, não acreditava nas soluções econômicas que ainda hoje se propagam com ares utópicos. Entendeu que para além do sonho, a realidade só poderia ser construída pela reforma do caráter individual, e olvidando os matizes políticos e econômicos, inaugurou o socialismo espiritual, que em toda a sua elevação não foi ainda compreendido pelos partidários das soluções exteriores.
        No rebuliço do caldeirão cultural em que se formou e trabalhou, Lamennais adotou tardiamente o hábito clerical. Tinha a veia religiosa, mas abominava os movimentos de época que coroavam a infalibilidade papal. Via a hipocrisia e o indisfarçado cinismo prático dos padres e bispos em escandalosa contradição com as teorias pregadas por eles mesmos nos sermões. Ainda assim, em meio a dúvidas quanto a carreira a seguir, uma voz falou-lhe à consciência: “Chamo-te para carregar a minha cruz, apenas minhas cruz, não te esqueças.”[1]
        Lamennais não se esqueceu, e sua já piedosa índole se inflamou de uma disposição para o trabalho que cresceria mais e mais ao longo dos anos. Nas décadas de 1820 e 1830 surgem inúmeros tratados sobre sociedade e filosofia. Recluso, vivendo uma vida monástica mais auto imposta do que compatível com suas obrigações, Lamennais produz sem cessar. Mas não é de seu estilo alongar-se em argumentos e perspectivas. Suas obras são concisas e curtas, dominadas por imagens fortes e poéticas que ele tecia sob inspiração dos acontecimentos políticos e sociais, mas que quase sempre tinha um pano de fundo bíblico. Fundou mais de um jornal durante a vida, onde, aí sim, era escritor prolixo. Em 1837 assume o imortal Le Monde, que quase não sobrevive após sua saída.
        Dividimos os trabalhos de Lamennais segundo seu duplo viés filosófico-profético. Na primeira parte falaremos da filosofia política e social, e na segunda das visões do autor sobre a vinda do consolador. Mas como a primeira parte é de longe a mais extensa, dividimo-la em tendências socialistas e liberais. Lamennais é um dos pais do socialismo, de modo que o primeiro artigo será sobre este tema. No segundo artigo fecharemos a filosofia política deste autor falando um pouco sobre sua veia liberal, e trataremos panoramicamente de seus escritos proféticos.
        De todas as suas obras uma se destaca como a coroação de suas ideias e energia psíquica. Palavras de um homem de fé, possui um tom só comparável a de Jeremias e do Apocalipse. Obra evidentemente inspirada, é uma coletânea de sonhos e imagens que Lamennais tinha em meditação profunda, e que ele habilmente transportava para a forma narrativa.
        Democrata irredutível, Lamennais escreve seu terceiro sermão ilustrando a ideia de que o gênero humano foi trancafiado numa caverna escura, enquanto os reis e nobres gozam dos frutos da terra vasta:
        “E fui transportado em espírito para os tempos antigos, e a terra era bela, e rica, e fecunda; e seus habitantes viviam felizes, pois viviam como irmãos.” Esse primeiro trecho tem um quê de inocência romântica, bem ao estilo do mito da perda do paraíso e das teorias utópicas de Rousseau sobre o “bom selvagem”. Mas a continuação é mais simbólica do que filosófica.
E vi a Serpente esgueirar-se entre eles: fixou em muitos seu olhar poderoso, e a alma deles perturbou-se, e eles aproximaram-se, e a Serpente sussurrou-lhes ao ouvido.
E após ouvirem a palavra da Serpente ergueram-se e disseram: Somos reis!
E o Sol empalideceu e a terra adquiriu coloração fúnebre, como a da mortalha que envolve os mortos.
E ouviu-se um murmúrio surdo, um longo lamento, e no fundo do coração todos tremeram. (...)
O Medo foi de cabana em cabana, pois palácios ainda não havia, e a cada um disse coisas secretas que lhes provocavam arrepios.
E os que haviam dito: Somos reis, empunharam suas espadas e acompanharam o Medo de cabana em cabana. (...)
Amedrontados, os homens exclamaram: O assassínio voltou ao mundo. E foi só isso, pois o Medo transitara-lhes a alma e impedia o movimento de seus braços.
E deixaram-se acorrentar, a si, a suas mulheres, e a seus filhos. E aqueles que haviam dito: Somos reis, escavaram uma grande caverna, e ali encerraram toda a raça humana, assim como se encerram animais num estábulo. (...)
E compreendi que deveria haver um reino de Satanás antes do reino de Deus. E chorei e esperei.
E a visão que tive era verdadeira, pois o reino de Satanás realizou-se, e o reino de Deus se realizará também; e os que disseram: Somos reis, serão por sua vez encerrados na caverna com a Serpente, e a raça humana dali sairá; e, para ela, será como um novo nascimento, como a passagem da morte à vida. Que assim seja.[2]

          Vários pequenos detalhes nos chamam atenção. O primeiro e mais relevante é que esse processo ainda parece estar em curso, apesar de finda há algum tempo a era dos déspotas. Com todos os avanços da justiça, do direito, da democracia e da liberdade individual, ainda parece pertencer ao século seguinte o banimento da raça dos déspotas para fora da Terra. 
Cenas da mente de Lamennais

        Também é belo observar como a indignação não se traduz em revolta, nas palavras de Lamennais. É comum ver os agitadores políticos usarem como pólvora a indignação, incentivando a desordem, a rebelião e até o banho de sangue que é a revolução. Mas o socialismo espiritual de Lamennais, “espera e chora”, pois onde a palavra lúcida não puder transformar, o grito não haverá de colaborar. O quão tocante é o sentimento de Lamennais, mas quanto ainda se o confunde com indiferença, com passividade...
        Na quarta alegoria Lamennais diagnostica impecavelmente a causa da injustiça na ausência da fraternidade cristã. Esta sim a alavanca social capaz de solapar todo o mal. Assim ele diz: “Amai-vos uns aos outros, e não temereis nem os grandes, nem os príncipes, nem os reis.”[3] Que forma estranha de lutar pela justiça! Pensarão muitos. Não é outra, entretanto, que a forma do Cristo, da qual se esquecem muitos os que imaginam associar o evangelho a um socialismo de fundo materialista e puramente econômico.
        E nosso padre continua atacando o nacionalismo: “Não digas: Aquele é de um povo, e eu sou de outro povo... Se um membro é atingido, o corpo todo sofre.” E a indiferença: “Não sejais como os cordeiros que, se o logo captura um, sentem medo por um momento e em seguida tornam a pastar. Pois, pensam, talvez ele se contente com a primeira ou com a segunda presa: e porque deveria me preocupar com aqueles que o lobo devora? Sobrará mais pasto para mim.”
        O curto sermão número cinco contém uma comparação entre os criminosos e os condenados, aos quais todos consideramos dignos de prisão e pena, e Jesus Cristo, um preso e condenado, a quem toda a multidão gritava “matem”. Por isso, conclui Lamennais, tende mais cuidado quando todos acusarem um condenado e o julgarem digno de castigo, pois pode ocorrer de ser ele um mártir e um inocente. E ainda que seja culpado, como a mulher adúltera, não declarou o Cristo que ela saísse sem qualquer punição?
        No sermão número sete o profeta moderno cria esta forte parábola:
Um homem viajava pelas montanhas e chegou a um local onde uma grande rocha rolara sobre o caminho e o tomara por inteiro, e fora do caminho não havia outra saída, nem à esquerda, nem à direita.
Ora, esse homem, ao perceber que não poderia continuar sua viagem por causa do rochedo, tentou movê-lo para abrir passagem e cansou-se muito com esse trabalho, e todos os seus esforços foram vãos.
Percebendo isso sentou-se cheio de tristeza e disse: O que será de mim quando a noite cair e me surpreender neste ermo sem alimento, sem abrigo, sem qualquer defesa, na hora em que as bestas ferozes saem em busca de suas presas?
E, enquanto estava absorto em seus pensamentos, surgiu outro viajante, e este, depois de fazer o mesmo que o primeiro fizera e apercebendo-se também impotente para mover o rochedo, sentou-se em silêncio e baixou a cabeça.
E depois deste chegaram muitos outros, e nenhum deles conseguiu mover o rochedo, e o temor de todos era grande.
Finalmente um deles disse aos demais: Irmãos, oremos ao nosso Pai que está no céu: talvez ele se compadeça de nós nesta aflição.
E suas palavras foram ouvidas, e eles oraram de todo o coração para o Pai que está no céu.
E depois de orarem aquele que dissera: Oremos, disse ainda: Meus irmãos, aquilo que nenhum de nós conseguiu fazer sozinho, quem sabe não conseguiríamos fazer juntos?
E eles se ergueram, e todos juntos empurraram o rochedo, e o rochedo cedeu, e eles seguiram seu caminho em paz.
O viajante é o homem, a viagem é a vida, o rochedo são as misérias que ele encontra a cada passo em seu caminho.
Nenhum homem conseguiria erguer sozinho o rochedo, mas Deus calculou seu peso de tal modo que ele nunca detenha os que viajam juntos.[4]

          Esse texto tão singelo capaz de nos comover tão profundamente parece ter sido extraído do evangelho. Diante de alegorias como esta caem todas as pompas da vaidade intelectual, que os filósofos sustentam nos seus intrincados jogos de palavras, e que geralmente a nada conduzem. A parte que mais nos toca é relativa à falta de percepção dos viajores, que não encontram a solução óbvia para o problema que a todos aflige. Mas um deles lembra-se de orar e pedir por inspiração. O que a frágil mente humana não equaciona, pode sempre tomar do repositório infinito da sabedoria universal. E a resposta dos céus veio aos ouvidos deste mesmo homem que previamente já inspirado sugeriu a oração. Uma resposta que nada contém de mágico ou sobrenatural, consistindo numa simples conclusão lógica. Quase todos os problemas poderiam ser assim solucionados.
        Ainda no campo da teoria social Lamennais escreve o oitavo sermão com uma gravidade assustadora:
Deus condenou todos os homens ao trabalho, e todos têm sua labuta, quer do corpo, quer do espírito; e aqueles que dizem: não hei de trabalhar, são os mais miseráveis.
Pois, assim como os vermes devoram os cadáveres, os vícios os devoram, e se não são devorados pelos vícios, são devorados pelo tédio.
E quando Deus quis que o homem trabalhasse, escondeu um tesouro no trabalho, porque é pai, e amor de pai não morre. (...)
E Deus ainda lhes ditou esse preceito: Ajudai-vos uns aos outros, pois entre vós existem os mais fortes e os mais fracos, os enfermos e os saudáveis; e entretanto todos devem viver.
E, se assim fizerdes, todos viverão, porque recompensarei a compaixão que tiverdes por vossos irmãos, e tornarei fecundo o vosso suor.
E o que Deus prometeu sempre se atestou, e jamais se viu carecer de pão quem tivesse ajudado seus irmãos.
Ora, em outros tempos viveu um homem malvado e amaldiçoado pelo céu. E esse homem era forte, e odiava o trabalho, de modo que disse: O que farei? Se não trabalhar, morrerei, e o trabalho me é insuportável?
Então, em seu coração introduziu-se um pensamento infernal. Saiu durante a noite, capturou alguns irmãos seus enquanto estes dormiam, e cobriu-os de correntes.
Pois, dizia, com varas e chicote eu os forçarei a trabalhar para mim, e comerei do fruto do trabalho deles.
E fez o que pensara; e outros, ao verem aquilo, fizeram o mesmo, e não houve mais irmãos, passou a haver senhores e escravos.
Esse foi um dia de luto em toda a terra.
Muito tempo depois veio um homem mais malvado que o primeiro... e disse consigo mesmo:
Talvez fosse possível eu acorrentar alguns e força-los a trabalhar para mim; mas seria preciso alimentá-los, e isso reduziria meu ganho. Façamos melhor; que trabalhem por nada! Na verdade, morrerão, mas como o seu número é grande, acumularei riquezas antes que eles diminuam muito, e sempre restará um número suficiente deles.
Tendo-se pronunciado daquela maneira, dirigiu-se em particular a alguns e disse: Trabalhareis durante seis horas e ganhareis uma moeda pelo vosso trabalho. Trabalharei durante doze horas, e ganhareis duas moedas, e vivereis bem melhor...
E eles acreditaram.
Ora, disso decorre que, tendo a quantidade de trabalho dobrado sem que a necessidade de trabalho fosse maior, a metade dos que viviam outrora de seu labor não encontrou mais ninguém para empregá-la.
Então o homem malvado, em que haviam acreditado, disse-lhes: Darei trabalho a todos vós, contando que trabalheis pelo mesmo tempo e eu só vos pague a metade do que vos pagava; pois desejo prestar-vos esse serviço...
E como tinham fome, eles, suas mulheres e filhos aceitaram a proposta do homem malvado e abençoaram-no, pois – diziam – nos dá a vida.
E eles morriam por carência do necessário, e outros corriam a substituí-los, pois a indigência se tornara tão profunda naquela terra que famílias inteiras se vendiam por um pedaço de pão.
E o homem malvado que mentira a seus irmãos acumulou mais riquezas que o homem malvado que os acorrentara.
O nome deste é TIRANO; o outro só tem nome no inferno.[5]

          Esse trecho ressalta a situação desumana dos trabalhadores de fábrica e camponeses do início da era industrial, um problema que incomodava sobremaneira a Marx e outros ideólogos do socialismo ao longo de todo o século XIX. É difícil imaginar como uma situação tão injusta se mantinha, em gritante distonia não apenas com nossa época de direitos trabalhistas, salário mínimo e outras conquistas do século XX, mas também em comparação com o estado dos servos medievais e citadinos da renascença, que era, apesar de tudo, bastante melhor.
        Essa situação atípica na história mundial, que muitos outros também consideravam pior que a escravidão, despertou críticas de todos os grupos, liberais ou socialistas, padres ou filósofos, burgueses ou mesmo nobres, encontrando finalmente na equação moral-econômica de Tocqueville a fórmula da perfeita justiça social.
        O que nos fere a sensibilidade contemporânea não é o fato de ter havido, num momento de turbulência política e absolutismo, um tal estado de coisas, mas que ele tão imediatamente nos evoque imagens do trabalhador fabril na China ou na Índia, do sertanejo brasileiro ou do pescador caribenho, do pastor africano e do carvoeiro russo, indivíduos que em pleno século XXI permanecem esmagados pela mesma indigência, pela mesma desumanidade por parte de estados, empresas e, principalmente, sociedades para os quais são invisíveis.
     O aspecto transtornador do socialismo de hoje é o ser ele praticado por funcionários públicos, cujos vencimentos são superiores a quatro, cinco, inúmeros salários mínimos, sem o menor compadecimento para os que têm de se contentar com muito menos. Que as greves de hoje não sejam pelos trabalhadores escravos na Amazônia, pelas crianças das carvoarias e mandiocais ou pelos boias-frias, mas para o aumento dos salários de quem já ganha acima das médias nacionais, e o bastante para se ter um carro e viajar nas férias.
      Todos queremos melhores condições, mas a comparação não pode ser feita apenas com os que estão acima, ou o resultado será a escandalosa cegueira das nossas atuais lutas sociais, por aumentos de benefícios para nossos próprios grupos, como no exemplo hiperbólico dos políticos e juízes que nos despertam repulsa votando salários cada vez maiores para si.
       Quem quer que queira ser um socialista da lavra de Lamennais deveria dedicar ao pobre todas as suas forças e economias, para só depois exigir dos outros a mesma postura. Mas o que se vê, bem ao contrário, é um discurso hipócrita e vergonhoso que atribui responsabilidades ao Estado, aos ricos, a quem quer que seja, que não nós mesmos. E enquanto cada classe luta por seus interesses, seguindo a recomendação de Marx, ninguém trabalha em favor do próximo, olvidando as sábias recomendações de Lamennais.
        E se Lamennais nos dá o tom de um socialismo digno e enobrecido, faz o mesmo com o liberalismo, unindo-os na teoria social superior do cristianismo: liberdade e justiça; responsabilidade e solidariedade. Ensinando ao dualismo partidário que só há uma humanidade.

(Continua em Lamennais e Kardec II)

Bibliografia:
LAMENNAIS, Félicité de. Palavras de um homem de fé. São Paulo: Martins fontes, 1998.


[1] Isto nos narra André Derval, responsável pela introdução e pelas notas da moderna edição de Palavras de um homem de fé, o livro mais célebre de Lamennais.
[2] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 9.
[3] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 11.
[4] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 18.
[5] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 21.