segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Agostinho e Kardec I


Aurélio Agostinho, Agostinho de Tagaste, Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, como é mais conhecido, foi uma das personalidades marcantes da história humana. O Cristianismo seria irreconhecível sem a expressão de seu gênio. Católicos, protestantes, ortodoxos e mesmo espíritas, estes dissidentes tão distantes de seus primos da tradição, todos têm em Agostinho um guia e referencial da pureza cristã, do zelo na defesa da fé, dos cuidados com a vigília incessante das obscuridades da alma e de um ardor poético no louvor a Deus.
Aurélio Agostinho

Falar de Agostinho significa assumir diversos riscos; riscos que preferiríamos evitar se não fosse tão grande a necessidade de trazê-lo mais para perto de nós. Sem medo de sermos prolixos, dividimos este artigo em três partes, referentes respectivamente à vida e conversão, às Confissões e uma última referente à Cidade de Deus e a presença dele na Codificação do Espiritismo. É que Agostinho não nos permite um gasto menor de espaço e esforço para apresentação de suas ideias, nem pode seu pensamento, como o da maioria, ser separado para fins didáticos, com o que se mataria sua essência rica de propósitos e referências cruzadas. Em outras palavras, só se compreende sua doutrina através de um contato com sua biografia.
         Agostinho era um cidadão romano, pertencente a uma classe média. Numa sociedade complexa e diversificada, sua posição não distava muito da dos jovens de hoje, com seus divertimentos coletivos, caça às garotas e total despreocupação com o futuro. Sem serem ricos, Agostinho e os seus não tinham preocupações materiais. O pai era um adúltero assumido, e vivia conforme um homem de boa posição na sociedade romana. A mãe, sendo cristã, esperava sem ressentimentos ou perturbações, convencida de que Deus iria converter o filho pervertido e compensá-la pelos seus desgostos após a morte.
         Agostinho via no pai a força e a liberdade do estilo de vida romano, com sua consciência desimpedida, e na mãe a figura dos fracos de espírito, com sua crença de escravos e perdedores. Apesar disso, uma parte de si a admirava na sua resignação estoica e na sua perseverança nos seus simplórios ideais.
         Aos 18 anos viu-se pai de um filho, ao qual chamava jocosamente “filho dos meus pecados”. Aos 29, hábil nas letras e na retórica, decidiu mudar-se para Roma, em busca de melhores vencimentos e prestígio. A mãe, receosa de que isto agravasse seus desregramentos, decidiu ir junto. Agostinho fingiu aceitar, e no dia da viagem, enganou-a, deixando-a numa capela enquanto partia às pressas.[1] Ela, porém, não desistira de resgatar a alma corrompida do filho, e anos depois o alcançou em Milão.
Abraçou a doutrina do maniqueísmo, que deixaria marcas permanentes na sua e na visão de muitos outros cristãos. Adorava Cícero e os filósofos de seu tempo. Não fazia muitos comentários sobre os poetas, mas a julgar pela sua própria habilidade lírica deveria conhecê-los razoavelmente bem. Como retor era imbatível.
O problema de Agostinho com o Cristianismo era todo filosófico. Não admitia que aquele modelo simplório de descrição do mundo pudesse competir com a lógica da filosofia e o rigor das ciências e das artes liberais. Desde sua estadia em Roma já não era mais o hedonista e cínico da adolescência, nem o maniqueu esotérico da casa dos 20 anos, mas, enxergando seus erros, voltava a cair no mesmo abismo ao qual estava acostumado.
A vida de Agostinho era tudo menos monótona. Convencido pela mãe, cuja fé simples e sincera admirava, ouvia as pregações de santo Ambrósio em Milão. A seguir fugia desses flertes com o Cristianismo para não despertar o deboche dos colegas da academia. Mantinha diversos credos sem poder abraçar nenhum definitivamente.
Enfim o encontro com o platonismo e o neoplatonismo lhe propiciaram o contato com uma filosofia que ansiava pela proximidade com a religião.
Em um ambiente intelectualmente agitado, foi Paulo quem aos poucos conquistou seu espírito. Nos textos do velho convertido Agostinho reconhecia o pecador com quem podia se identificar; o arrependido que abandonara o orgulho da ciência do mundo e se transformara em santo.
Will Durant nos dá a seguinte descrição de suas crises psicológicas e de sua solução:
Cortejou durante algum tempo o ceticismo da academia. Era um homem de emoções fortes, portanto não demorava muito em pender por um ou por outro julgamento. Estudou Platão e Plotino em Roma; o neoplatonismo integrou-se profundamente em sua filosofia e, por intermédio dele, dominou a teologia cristã até o tempo de Abelardo. Tornou-se para Agostinho a porta de entrada para o Cristianismo... Certo dia, estando sentado num jardim de Milão com seu amigo Alípio, pareceu-lhe ouvir uma voz a repetir-lhe muitas vezes no ouvido: “lê, lê” Agostinho pôs-se a ler um trecho de Paulo: “Não vos entregueis a orgias e libações, não sejais ambicioso nem estroina, não sejais belicoso nem invejoso; entregai-vos a Nosso Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos carnais.” Esta passagem trouxe a Agostinho uma grande transformação de sentimentos e ideais; havia alguma coisa naquela fé que era mais ardente e mais profunda que toda a lógica da filosofia. O Cristianismo lhe surgiu dando-lhe uma satisfação profundamente emotiva. Renunciando ao ceticismo de sua inteligência, encontrou, pela primeira vez em sua vida, um estímulo moral e paz para o espírito.[2]

Essa é, aliás, a história de toda a conversão espontânea. Um fenômeno que acontece nos raríssimos momentos em que um ser humano sente aquilo que está lendo de um livro sagrado.
         Começava a carreira de escritor e pregador cristão, com um brilhantismo que em muito ofuscava sua já reconhecida posição de professor de retórica. Os alunos dessa disciplina continuavam a chegar ao longo da vida de Agostinho, mas muitos se converteram ao Cristianismo através destas aulas. Poder-se-ia dizer que até então Agostinho brilhara pelo seu agudo intelecto; agora brilhava ainda mais, atingindo fama mundial com este mesmo intelecto alimentado por um fogo divino do sentimento e da fé exaltados.
Caracterizou-se pela defesa mista da liberdade e da graça na economia da salvação, pelo rigor de seu ascetismo e pela força inflamada com que defendia o Cristianismo de seus inúmeros perigos reais ou imaginários. Reforçou a doutrina do pecado, e de como a posição do homem exigia dele a mais profunda entrega a Deus. Este último traço de maniqueísmo o fazia enxergar apenas preto e branco nas questões morais e existenciais, ignorando circunstancias e relativismos culturais ou pessoais numa apologética irredutível de um cristianismo monástico.
De todas as suas disputas a mais malfadada, do ponto de vista espiritual, foi a que travou contra Pelágio, o herege que conseguiu furar todas as proibições do catolicismo e chegar aos grandes pensadores do Renascimento e do Iluminismo.
Durant narra da seguinte maneira esta saga:
Veio da Inglaterra o mais forte de seus oponentes, Pelágio, um monge independente, o qual defendeu com veemência a liberdade do homem e o fato de que ele podia salvar-se pela prática de boas ações. Na verdade, diz Pelágio, Deus nos auxilia, dando-nos Sua lei e mandamentos, o exemplo e preceitos dos santos, purificando-nos com a água do batismo e o sangue de Cristo. Deus não faz pesar a balança contra a nossa salvação ao fazer a natureza humana inerentemente má. Não houve pecado original, tampouco a queda do homem; somente aquele que comete o pecado é que será punido; sua culpa não recai nos filhos. Deus não predestina o homem para o céu ou o inferno, não escolhe arbitrariamente aquele que será condenado ou salvo; Ele deixa a nós mesmos a faculdade de escolhermos nosso destino. A teoria de que a depravação é inata na natureza humana, disse Pelágio, é a maneira covarde de se atribuir a Deus a culpa pelos pecados do homem. O homem é dotado de razão e, por isso, responsável pelos seus atos: “se devo fazer uma coisa é porque poso fazê-la.”
Pelágio chegou a Roma por volta de 400, viveu com famílias religiosas e granjeou a fama de se muito virtuoso... Um sínodo realizado no Oriente julgou o monge e declarou-o ortodoxo; um sínodo africano, convocado por Agostinho, não aceitou esta decisão e apelou para o papa Inocêncio I, o qual declarou Pelágio um herético.

         A disputa só foi concluída alguns anos depois com o Concílio de Éfeso, em que Pelágio e toda a sua doutrina foram condenados para sempre. Essa marca haveria de ser transmitida do catolicismo ao protestantismo, e jamais o Cristianismo aceitaria pacificamente a salvação pelo esforço e mérito, a inocência original do homem e a capacidade da razão de julgar o caminho mais apropriado para a fé. Graças a Agostinho, razão e fé se desenvolveram segundo uma ligação sólida, mas conturbada na tradição cristã, contrariamente à perfeita acomodação de que desfrutavam sob a ótica mais intelectualista do pensamento grego. Por mais que Agostinho estivesse satisfeito em abandonar sua promiscuidade e vaidade intelectual, esses que ele considerava sérios pecados nunca produziriam tanto mal para o mundo quanto a defecção da salutar doutrina de Pelágio.
Pelágio

 Seus erros e virtudes se misturam de tal modo que seria impossível, talvez, separá-los. Um menor ardor poderia ter arrefecido em excesso a índole combativa, fonte de sua produtividade; e uma tolerância mais filosófica poderia dar um ar pagão que desmereceria seus escritos aos olhos do clero, diminuindo seu impacto. Se Agostinho errou muito no que toca a sua intransigência, foi o espírito necessário num tempo de caos, pluralidade de doutrinas esdrúxulas e decadência final da sociedade romana que desaparecia ante as marés bárbaras. Um homem menos convicto provavelmente teria sido engolido pelas sombras do olvido, como ocorreu a maioria de seus opositores.
Feita essa apreciação, tem todo o cristão a obrigação de votar a ele a mais sincera gratidão pelos escritos edificantes que legou ao mundo. Nas Confissões, livro que imita o costume primitivo de se confessarem os cristãos uns aos outros em público, Agostinho deixa de lado suas inúmeras disputas ideológicas para alçar vôos de introspecção. São esses escritos, certamente, que lhe deram a palma posterior de autoridade máxima nos assuntos referentes ao autoconhecimento.

(continua em Agostinho e Kardec II)

Bibliografia:

DURANT, Will. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Rio de Janeiro: Record, 2002.


[1] Will DURANT. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Pg. 59.
[2] Will DURANT. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Pg. 59.

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