quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Agostinho e Kardec III


Em A Cidade de Deus, Agostinho declara sem rodeios ser a filosofia platônica a preferencial entre os cristãos:

Se Platão disse ser sábio quem imita, conhece e ama a Deus, de cuja participação depende ser feliz, que necessidade há de discutir as outras doutrinas? Nenhuma se aproxima da nossa mais do que a doutrina de Platão.[1]
Compreenderam os platônicos, a quem vemos, não imerecidamente, antepostos aos demais em glória e fama, que nenhum corpo é Deus. Por isso, transcenderam todos os corpos em busca de Deus. Compreenderam, além disso, que o mutável não é supremo Deus. Entenderam também que toda espécie, de qualquer modo mutável, graças à qual todo ser é o que é, seja qual for o modo e seja qual for a natureza, não pode proceder senão de Quem verdadeiramente é porque é incomutavelmente.
(...)
Por causa da imutabilidade e simplicidade entenderam que Ele fez todas as coisas e não pôde ser feito por ninguém.[2]

Mas após essa defesa intelectual do platonismo, Agostinho ataca duramente a doutrina da comunicação com os espíritos. Entre os platônicos, Apuleio destacou-se por desenvolver uma cosmologia complexa, objetivando descrever todos os pormenores da vida e atividades dos “demônios”. Esses seres desencarnados, por terem vivido na terra e estando ainda materializados por suas paixões, seriam intermediários entre os deuses, seres já perfeitos pela prática da filosofia, e os homens viventes na Terra. Apuleio se excede nos contornos fantasiosos de suas descrições dos espíritos, mas apresenta alguns pontos lógicos no que toca a motivação desta estrutura cosmológica em camadas hierárquicas.
Agostinho levanta-se indignado contra esta que pensa ser a mais anticristã de todas as crenças, defendendo que os espíritos, por serem imperfeitos, seriam intermediários perigosos entre Deus e os homens. Desta forma, o que Apuleio e inúmeros platônicos defendem como argumento cosmológico, da ordem ascensional de perfeição dos espíritos, Agostinho rebate um tanto quanto impropriamente através de um argumento moral. Estaria a partir de então “corrigido” o platonismo, para servir aos propósitos do Cristianismo em sua forma católica.
Por fim Agostinho investe com todas as forças contra a opinião de Porfírio, segundo a qual se deveria invocar espíritos dos mortos para aconselhamento, estudo e intercessão de favores. Porfírio havia desenvolvido essa doutrina junto aos magos caldeus[3] adeptos da teurgia egípcia, país este em que vivia, e foi inclusive capaz de separar os espíritos em categorias, conforme suas atividades e grau de adiantamento moral. Conta-se até que Porfírio teria presidido cessões de materialização.
Plutarco afirmava, baseando-se principalmente nos relatos sobre Sócrates, que os espíritos não possuem língua, mas se comunicam exclusivamente pelo pensamento. Porfírio e Proclo discordariam veementemente desta afirmação, garantindo que tanto anjos quanto demônios utilizavam-se da língua local. Proclo, que experimentou diretamente diversos oráculos e videntes, diz que os espíritos se comunicam em sua língua pátria, mas podem também se comunicar na língua do médium. Em raros casos observara a xenoglossia, e pareceu muito impressionado que uma médium fosse capaz de falar em uma língua desconhecida (o armênio).[4]
Tais ideias eram, portanto, atribuídas a todos os platônicos, embora nem todos realmente defendessem a comunicabilidade com espíritos. Por isso Agostinho se insurgiu contra o platonismo em geral, a propósito de sua correção desta doutrina.
A obra continua com altos e baixos. Argumentos brilhantes se misturam a ataques malfadados à filosofia e a outras religiões da época, quase sempre com base no argumento de autoridade das escrituras. Em nenhum ponto é feita uma defesa teórica da autoridade da Bíblia sobre a razão ou sobre outras espécies de tradições religiosas, mas puramente se sustenta serem as escrituras “claramente mais autorizadas”. Em vista de uma defesa dogmática das absurdidades do Velho Testamento, tem nosso santo de rejeitar a razão em favor dos relatos do Gênese.
Entre um assunto e outro retornam os ataques à reencarnação, defendida então ainda por inúmeros cristãos, apesar da condenação pelo concílio de Nicéia, realizado décadas antes da redação de “A Cidade de Deus.”
Outro tema recorrente é a explicação filosófico-teológica da bondade de Deus e da exclusividade de Sua ação na criação do mundo, elemento este em que foi realmente virtuoso. Tanto o vigor de sua lógica quanto a fidelidade a todos os valores e princípios da fé cristã se coadunaram, novamente, na defesa da ineficiência do mal. O mal seria dotado de natureza defectiva, ao passo que somente o bem seria efetivo. Dessa forma, somente o bem operaria, enquanto o mal se caracterizaria pela falência ou corrupção de empreendimentos e coisas, incapaz de criar e engendrar obras. Completando as ideias expostas nas Confissões, essas análises ajudariam em muito o estabelecimento de uma perspectiva otimista para a moral e a cosmologia cristãs, apesar da também presente defesa da doutrina do pecado, ao qual se deu posteriormente desmedida importância.
A filosofia de Agostinho diagnostica e decreta o fim da era clássica e o início da Idade Média. Para o homem moderno isso soa mal, mas para a época foi uma alternativa benéfica para o caos absoluto. A era da razão havia dissolvido a sociedade. A que levou toda a filosofia e ciências greco-romanas? Que ordem social havia se estabelecido com o auxílio do intelecto? Quais eram as glórias do Império? A escravidão grassava, os bárbaros choviam de todas as partes sobre as terras já não tão produtivas, as elites perdiam a medida da baixeza e da impiedade; ávidos por novas paixões, todas as classes pediam mais excessos nos circos da morte, nos festins de glutonaria e embriaguez, nas orgias e nos múltiplos relacionamentos amorosos, desprovidos de qualquer humanidade e consideração pela própria saúde ou integridade.
         A ética e a teoria haviam feito sim inúmeros progressos. Contudo, as turbas ensandeciam enquanto os filósofos cultivavam o espírito em jardins afastados dos centos populosos. Os santos e sábios gregos vagavam como mendigos maltrapilhos pelas ruas opulentas. Vergados pela descrença em qualquer possibilidade de renovação da natureza humana, mantinham-se cada vez mais céticos e cínicos, adjetivos estes que inclusive nomearam duas das escolas mais famosas da época.
         Os pensadores cristãos identificaram nesse estado de coisas uma falência da inteligência humana diante dos problemas pertinentes a vontade e ao sentimento. Agostinho foi um dos que melhor perceberam o problema, e que melhores soluções propôs. Num mundo onde a razão não podia mais oferecer suas contribuições luminosas, somente a reforma dura, mesmo que artificial e imposta, do caráter poderia oferecer algum paliativo à desordem. As disciplinas monásticas se desenvolveram a partir desse precedente. Uma aversão natural ao período clássico surgiu, não como desprezo pela virtude dos filósofos, mas como incredulidade em sua capacidade de promover o bem geral.
A Idade Média não foi um momento de queda. Nasceu de uma saciedade, um esgotamento de um meio de vida que de modo algum podia se sustentar. Assim como ela mesma foi superada pelos seus excessos e erros, a era da fé tomou as rédeas de uma condução errada, ansiosa por fazer melhor.
A pergunta 495 de O Livro dos Espíritos contém uma resposta à quatro mãos; as de São Luís e as de Santo Agostinho. Espíritos afins, é possível que estejam de pleno acordo neste tocante e tenham redigido juntos o segmento, mas em nosso estudo particular sobre Agostinho ressalta a sua afinidade sui generis com o tema e estilo de investigação. Só um mestre do solilóquio poderia imbuir uma explicação de cores tão vivas, de um tão marcante conhecimento de causa. Acresce que a famosa “voz” do episódio da conversão e inúmeras das meditações reveladas em Confissões são por demais semelhantes ao que ele aqui expõe. A doutrina dos anjos guardiães também conta entre um dos princípios defendidos por Agostinho em suas obras:
Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto de vós seres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e dedicados amigos do que todos os que mais intimamente se vos ligam na Terra? Eles se acham ao vosso lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aí permanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém penosa missão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nem nos cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de devassidão, nem na solidão estais separados destes amigos a quem não podeis ver, mas cujo brando influxo vossa alma sente, ao mesmo tempo que lhes ouve os ponderados conselhos...
Mas, oh! quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjo constrangido a vos observar: “Não te aconselhei isto? Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei o abismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua consciência a voz da verdade? Preferiste, no entanto, seguir os conselhos da mentira!” Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães; estabelecei entre eles e vos esta terna amizade que reina entre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que eles tem o olhar de Deus e não podeis enganá-los. (LE. Cap. IX, pergunta 495)

Dentre as numerosas e extensas comunicações de Agostinho dirigidas a Kardec o quão revelador já não nos é este curto fragmento. A beleza aludida pelos espíritos é a da presença dos seres amáveis e amados junto de cada homem, digno ou indigno, nobre ou corrupto. Doutrina esta tão cara aos orientais em seu culto aos antepassados, e que aqui nos é apresentada com uma sutil analogia entre olhar de Deus e o dos espíritos protetores. O juízo de Deus, elemento poderoso da moral dos povos, é tão mais sentido quanto mais forte é a crença de que Ele tudo vê. Mas aqui não se está apenas a afirmar a onipresença de Deus, que nossa mente ainda não compreende e que muitas vezes acha vaga, como também a presença e ciência de parentes e amigos sobre nossos mais pequenos atos e pensamentos.
         Sabedor deste processo, o homem pode divisar com clareza a seriedade de sua vida moral, devassada por seres que o conhecem e que lhe são caros. A lembrança do pai, dos avós, da mãe, dos irmãos ou filhos, dos melhores amigos, envergonha o homem no íntimo quando nem a visão de Deus o havia feito retroceder de seus crimes. É que o Altíssimo é visto como distante, sua perfeição moral inalcançável, enquanto a lembrança de alguém honrado enche de vergonha aquele que se precipita. A Deus o homem exclama com hipocrisia: “Tu me fizeste assim; não reclames!”, mas ante a presença ou lembrança de um amigo impoluto a farsa é desbancada. Os filhos pródigos do mundo provam a força do esforço pessoal e a possibilidade da regeneração; os bons dão testemunho da divindade que há em cada homem, e nós já não podemos encará-los sem corar, sabedores de que o homem, podendo ser perfeito, permanece com gosto em seus vícios.
         Além disso, o apelo que a presença de entidades simpáticas possui sobre o coração do homem é uma ferramenta poderosa que Deus usa em favor de ambos. O espírito sente a importância de sua individualidade quando é pela sua intercessão que um pecador irredutível dá brechas ao arrependimento. Essa mesma magia da afinidade pessoal dá aos protegidos uma especial sensibilidade para captar as ideais e sensações que lhe tentam transmitir seus numes tutelares.
         No célebre ditado sobre o autoconhecimento, Agostinho reafirma seu poder introspectivo em sentenças da mais simples e profunda psicologia:
Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma... Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar no novo mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado?” (LE. Cap. XII, pergunta 919)

         Aqui novamente a grandiosa ideia do olhar da justiça, cuja falta insubstituível tanto limita os princípios da ética materialista. Grifamos as palavras não ousaríeis confessar, imaginando que elas não apenas resumem o dever do homem para com Deus, mas para com sua própria razão. A famosa Crítica da Razão Prática, pela qual Immanuel Kant imortalizou-se no apogeu da ética universal, não contem outro ensinamento.
A moral é, até certo ponto, relativa. Ela demanda, assim, um imperativo da razão, um princípio segundo o qual nossas noções subjetivas de bom e mau possam se converter num dever objetivo para com os outros. Para arrancar do ensimesmamento as noções de bem e de justiça, forçoso é dar-lhe caráter público. O que nas sombras do anonimato nossa alma esconde, não pode escamotear sob a luz da publicidade. Eis, pois, o segredo da filosofia moral: imaginar que todas as ações pudessem ser públicas. Se isto fazemos, prontamente tememos revelar o que até pouco julgávamos inocente. Nosso comportamento se esconde na moral relativa de não causar danos imediatos, mas se por omissões e mentiras sustentamos esta situação, é falsamente que nos inocentamos, pois a retidão exige de nós a pureza de consciência independente do tempo.
Uma outra máxima completa e emula esta: Agir de forma tal que minha ação, ao ser imitada pelos demais e/ou aplicada por outros a mim mesmo, receba o meu total consentimento. Enquanto a primeira elimina o autoengano, esta combate o egoísmo. Quem não se revoltaria com o adultério cometido contra si mesmo? Quem anui de boa vontade que lhe mintam, mesmo nas pequenas coisas? Ainda que repudiemos estas ações, encontramos boas motivações para fazê-las, o que caracteriza nosso profundo egoísmo.
Como se a pouco tivesse folheado a Crítica da Razão Prática, Agostinho continua:
Mas, direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão do amor-próprio para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera apenas previdente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio de verificação que não pode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como a qualificaríeis se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não na podeis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na aplicação de sua justiça. (LE. Cap. XII, pergunta 919)

Com isso se explana a filosofia moral, sem que cheguemos perto de mandamentos positivos como o de fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem. Esta máxima do Cristo exige a caridade, enquanto que a da ética apenas a cordura e a honradez. Mas que dificuldade em cumprir apenas esta ética negativa, que restringe o nosso mal sem nos exigir o sacrifício e a renúncia. E que mundo se formaria ainda que somente esta primeira parte fosse realizada em nossas consciências.
        Agostinho é, para parodiar a ele mesmo, toda uma cidade espiritual digna de mapeamento cuidadoso. Somente o espírito de Agostinho, em seus ditados a Kardec, mereceria longos e graves estudos. Mas finalizamos esta análise acreditando ter levantado algo da personalidade histórica de um dos grandes autores da Codificação. A comparação entre sua obra em vida, salvo todas as limitações de época e comprometimentos com a dogmática da Igreja, e os ditados feitos a Kardec parecem revelar, mesmo que para o crítico mais descrente, uma profunda afinidade de ideias e sentimentos.



[1] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 306.
[2] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 308.
[3] Atual Iraque.
[4] Helmut ZANDER. Geschichte der Seelenwanderung in Europa.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Agostinho e Kardec II


Continuando a sequência do primeiro texto que visava introduzir e contextualizar o papel de Agostinho, passamos a um sobrevoo por sua obra prima.
Assim se inicia este livro magistral, com nada menos do que um dos mais belos parágrafos que a cultura humana produziu:
Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado. É grande o vosso poder e incomensurável a vossa sabedoria. O homem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; - O homem, que publica a sua mortalidade, arrastando o testemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criaste para Vós e o nosso coração repousa inquieto, enquanto não repousa em Vós. [1]

Paulo de Tarso, o grande ídolo de Agostinho
No terceiro capítulo do livro sétimo, Agostinho inicia uma escalada lírica que reveste o profundo processo psicológico de sua conversão. Este fragmento denota o assombro diante das dificuldades de retorno à origem:
Por que assim, ó Senhor, Deus meu, quando Vós próprio sois a vossa alegria eterna, e tudo o que está à vossa volta se alegra em Vós? Por que é que esta parte das vossas obras oscila em alternativas de queda e de progresso, de ofensas e de reconciliações? Será esta a sua condição? Só lhe concedestes isso, quando da altura dos céus até os abismos da terra, do princípio ao fim dos séculos, do anjo ao mais pequenino verme, do primeiro ao último movimento dispúnheis todas as variedades de bens e todas as vossas obras justas no seu lugar, e as determináveis no seu respectivo tempo? Ai de mim! Quão alto sois nas alturas e quão profundo nos profundos abismos! Nunca vos apartais de nós e, contudo, com que dificuldade nos voltamos para Vós.[2]

E a dificuldade estava exatamente no seguinte:
O inimigo dominava o meu querer, e dele me forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que, por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso lhe chamei cadeia –, me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova, que começava a existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e de querer gozar de Vós, ó meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não achava apta a superar a outra vontade, fortificada pela concupiscência. Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me a alma.[3]

         Como contrariar a verdade desta revelação? Acaso alguém já devassou mais profundamente o mistério da vontade? Quem pode negar que o “inocente” hábito, ao qual nos permitimos por fraqueza e com consciência, seja a causa de todas as necessidades que depois nos escravizam? Os vícios, as compulsões e obsessões, as patologias mais absurdas começam com os maus hábitos, frágeis e discretos em sua raiz, mas por isso mesmo é tentador justifica-los, defender sua inocuidade, “permitir-se”, como na linguagem adulterada de nossa geração.
     Não há hoje palavra mais celebrada que o 'permitir-se'. Como se todo o comedimento, toda a privação, remontasse a uma repressão tirânica, um exagero do pudor. A psicologia desviada prega, a cultura exalta, as personalidades, especialmente as que hoje se denominam “artistas”, idolatram a nova deusa. Permissividade é o seu nome; honestidade e autenticidade são seus falsos distintivos de autoridade, ficar “de bem consigo mesmo” é a sua mentirosa promessa.
         Mas o clímax que hoje se vivencia não é mais que um retorno das mil Babilônias da história. Roma com sua licenciosidade escandalosa, com seus cidadãos pervertidos a se considerarem livres das amarras do passado virtuoso. A Paris e a Londres das festas e das orgias. Ricos e pobres cultuando a vadiagem e a depravação como conquistas da civilização e do progresso. Nossa época teve muitos precedentes. Só a generalização e internacionalização da imoralidade é uma novidade. É que a alma tem em sua natureza este conflito, com potencial para elevar-se ou decair, e os meios se multiplicaram, tanto para a queda como para a ascensão; preferindo as criaturas lamentavelmente a opção que lhes é mais próxima da realidade mental e dos hábitos arraigados.
Essa dicotomia da alma tem, entretanto, uma polaridade mais forte do que a outra, como se uma das tendências manifestasse o determinismo universal do progresso, enquanto a outra constitui meramente um elemento de resistência. Bem e mal, de forma neoplatônica, são uma polaridade assimétrica. Todo o criado é limitado, fraco, mas a sua parte divina, aquilo que faz dela a imagem do criador, é sempre mais forte. Não obstante, este não é um conflito simples, porque apesar de constituir a parte mais fraca, a escuridão é a predominante na natureza humana, saída do lodo e a ele habituada. A ascensão para a luz é estranha ao homem, mesmo que a própria treva de onde ele tenta, ou não, se desgarrar seja produzida pela luz.
Semelhante ao que dorme num sonho, sentia-me docemente oprimido pelo peso do século. Os pensamentos com que em Vós meditava pareciam-se com os esforços daqueles que desejavam despertar, mas que, vencidos pela profundeza da sonolência, de novo mergulham no sono. Não há ninguém que queira dormir sempre. A sã razão de todos concorda que é preferível estar acordado. E contudo, quando o torpor torna os membros pesados, retarda-se, as mais das vezes, a hora de sacudir o sono, e vai-se continuando, de boa vontade, a prolonga-lo até ao aborrecimento, mesmo depois de haver chegado o tempo de levantar.
(...)
Mostrando-me Vós, por toda parte, que faláveis verdade, eu, que já estava convencido, não tinha absolutamente nada que Vos responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Um instante, um instantinho, esperai um momento”. Mas este “instante” não tinha fim, e este “esperai um momento” ia-se prolongando.[4]
        
Esse período de lutas desemboca na conversão, onde toda a sensibilidade de Agostinho se transubstancia da guerra ao louvor bem-aventurado. O crente deseja cantar em altos brados a sua alegria, a sua libertação, e, naturalmente, só o pode fazer através dos Salmos. Assim enche-se o nono capítulo com os cânticos de adoração dos judeus, sua herança maior para a humanidade. Com destaque para o salmo 4.
“Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Para que amais a vaidade e buscais a mentira?”[5]
“Está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto, Senhor.”[6]
“Oh! Estarei em paz! Oh! Viverei em paz no seu mesmo ser!”[7]
“Deus do meu coração, minha glória e minha vida”[8]
“aproveis esta oblação voluntária da minha boca.”[9]

Tão bem encadeada é a narrativa e tão orgânicos se tornam os salmos dentro desse edifício que se diria ser o mesmo autor o das confissões e o dos mais belos cânticos. Chega-se, afinal, ao livro X, e a religião se encontra com a filosofia, mas não mais em choque. Divinamente aparentadas, ambas as disciplinas se fortalecem, mas uma forte soberania da fé sobre a razão é a chave para semelhantes bodas.
O capítulo contém, pouco após o seu início, um esclarecimento sobre a necessidade da confissão. Nela ressalta-se uma compreensão lúcida da sabedoria paulina.
Vós, Senhor, podeis julgar-me, porque ninguém “conhece o que se passa num homem, senão o seu espírito, que nele reside.”[10] Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece. Mas Vós, Senhor, que o criastes, sabeis todas as suas coisas. Eu, ainda que diante de Vós me despreze e me tenha na conta de terra e cinza, sei de Vós algumas coisas que não conheço de mim. “Nós agora vemos como por um espelho, em enigma, e não ainda face a face.”[11] Por isso, enquanto peregrino longe de Vós, estou mais presente a mim do que a Vós. Sei que em nada podeis ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso ou não posso resistir. Todavia, tenho esperança, porque sois fiel e não permitis que sejamos tentados acima das próprias forças. Com a tentação, dai-nos também os meios para a podermos suportar.[12]
Confessarei, pois, o que sei de mim, e confessarei também o que de mim ignoro, pois o que sei de mim, só o sei porque Vós me iluminais; e o que ignoro, ignora-lo-ei somente enquanto as minhas trevas se não transformarem em meio-dia, na vossa presença.[13]

         E chegando a um dos pontos mais altos de toda essa estonteante obra, vislumbramos a definição agostiniana de Deus. O filósofo-santo-poeta pergunta a tudo, céu e mar, animais e plantas, estrelas e elementos, e tudo é impotente para dar-lhe a imagem de Deus. Mas toda a criação exclama: “Foi Ele quem nos criou.”[14] Como nas ancestrais Upanixades, a busca ansiosa de Agostinho não é frustrada, apesar de ele não chegar ao Arquiteto do qual tudo se origina. Pois, para o assombro dos céticos, a natureza responde em festa ao interrogatório, e o crente reconhece sem esforço não ser o sol o seu Deus, mas a luz do sol; não o vento, mas a sua carícia; não as aves, mas o seu canto.
“...Amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o tempo não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que eu amo, quando amo o meu Deus.”[15]

         Insaciado, Agostinho prossegue investigando as criaturas do universo, e tudo lhe é ao mesmo tempo insuficiente e promissor. Obras e virtudes anunciam o Criador, mas ele não se apresenta diretamente. E num dos momentos de maior elevação do gênero humano, Agostinho equaciona toda a teoria estética numa sentença que um dia ainda deverá balizar a arte do futuro: “A minha pergunta consistia em contemplá-las; a sua resposta era a sua beleza.”[16]
Chagamos a parte propriamente filosófica do livro, onde as dificuldades metafísicas, epistemológicas e psicológicas exigem um tratamento mais vagaroso e técnico. Este trecho, respectivo ao poder da memória, torna-se a pedra angular da compreensão agostiniana da alma, de suas faculdades, e em especial da liberdade.
         A memória armazenaria imagens e conhecimento. As imagens sendo aquelas impressões sensíveis dos objetos, como cópias deles, meramente destinadas a informar, e acessadas pela mente com a função de referenciar o que são as coisas e situações. O conhecimento não se refere aos objetos, e, portanto, não se resume a cópia do que foi percebido. Ele encerra a classe de realidades mentais independentes dos objetos exteriores, como a matemática. Enquanto a imagem é uma reprodução mental de uma coisa, o conhecimento é uma lembrança de uma lei, um padrão ou um princípio, não podendo ser afetado pela confusão.
         Agostinho se revela um mestre da psicanálise. Ele reconhece que há memórias tão obscuras, “escondidas em cavidades secretíssimas da mente”, que só podem de lá ser arrancadas por força de um agente externo, como algo que se refira diretamente àquelas lembranças perdidas. Percebeu que a memória lembra-se de lembrar, como quando fazemos notas mentais para não esquecer algo, e mesmo nos recordamos de nos ter programado para recordar algo. E o mais impressionante, a memória pode trazer, contra todo o juízo dos materialistas, uma sensação contrária a que experimentamos agora. Pode o homem em meio ao prazer avivar a memória de suas tristezas e dores, ou em meio ao ócio sentir em si as agruras do trabalho, ou ainda, padecendo de enfermidade, ter a sensação de gozar de perfeita saúde, tudo isto contradizendo as sensações mais fortes que o corpo lhe comunica naquele instante. É por essa propriedade que o homem pode viver espiritualmente, não apenas no plano abstrato, mas até no plano sensível e emocional, dando menor importância ao que experimenta presentemente o corpo.
         Esse mesmo poder de representar e evocar elementos ausentes da percepção exerce o mais importante papel na vida humana, a lembrança da felicidade. Pergunte-se a qualquer homem se é plenamente feliz, e excetuando-se pelos desacostumados a maiores reflexões todos responderão que não, ainda. Falta-lhes algo, que os vulgares imaginam ser mais saúde, dinheiro ou a presença de pessoas pelas quais são enamorados, e os mais sensatos saberão dizer: “não sei o que me falta, mas sei que há algo do qual depende minha felicidade”.
         O homem sente a falta de uma felicidade que jamais experimentou. Como pode ser assim? Agostinho imagina ter encontrado a resposta na memória do esquecimento. Às vezes, quando nos esquecemos de algo, temos a sensação deste esquecimento. Ele não é completo, e embora não nos lembremos do quê, sabemos haver esquecido de algo. Quem não experimentou essa sensação de achar ter algo ausente de sua memória, algo importante, mas sem poder inferir o menor detalhe sobre este?
         O homem tem um tal esquecimento radical na sua alma. Algo perdido que precisa reencontrar, e sem o que não está completo. Mas, a tragédia, ele sequer sabe o que perdeu. Só pode confiar no instinto que lhe diz: “Encontrai este algo e sereis feliz”. Sabemos todos que a felicidade existe, e disto temos uma certeza profunda, mas a ninguém ocorre onde possa estar.[17]
         Ora, a felicidade só pode estar no fundo da alma, naquilo que ela tem de mais próprio, no seu ser. E não é outro senão Deus este fundo.
Poderemos então concluir que nem todos querem ser felizes porque há alguns que não querem alegrar-se em Vós, que sois a única vida feliz? Não; todos quere uma vida feliz. Mas como a carne combate contra o espírito e o espírito contra a carne, muitos não fazem o que querem, mas entregam-se àquilo que podem fazer. Com isso se contentam, porque aquilo que não podem realizar, não o querem com a vontade quanta é necessária para o poderem fazer.[18] (grifo nosso)

         É por isso que muitos reconhecem, com razão, estar toda a moderna psicologia contida nas investigações de Agostinho. E na sequencia ele consegue aprofundar-se ainda mais:
Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou na falsidade. Todos são categóricos em afirmar que a preferem na verdade, como em dizer que desejam ser felizes. A vida feliz é a alegria que provém da verdade... Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado...
Por que a verdade gera ódio? Porque é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz, que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa querem que o que amam seja a verdade. Como não querem ser enganados, não se querem convencer de que estão em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa daquilo que amam em vez da verdade... Não querendo ser enganados e desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e odeiam-na quando ela os descobre.[19]
                                                                                           
Não é este o processo que a psicologia atual denomina racionalização? E como se poderia explica-lo melhor do que nestes termos: “os homens, por tanto amarem a verdade, enganam-se quando ela é contra eles, porque o que fazem ou querem, não o querem associar ao erro, e sim à verdade”? Assim cada homem pensa estar sempre com a razão, no que todos a contrariam. Esta a fonte de todas as disputas, no lar ou no templo, na vida pública ou na intimidade da própria consciência.
Pobre do homem que em seu orgulho foge da verdade para não se permitir ver a si mesmo como um tolo. Quanto mais o faz, mais mergulha na própria tolice, e menores são suas chances de escapar a esse destino vicioso, pois quão mais funda é a sua condição, quanto mais radical é o erro que ele sustenta, mais terrível será para o seu orgulho ter de confessá-los.
É também por isso que os filósofos, especialmente os franceses, do século das luzes se associavam, em teologia, à corrente dos agostinianos. A luz da razão, precursora da verdade, não pode luzir na presença das máscaras que o orgulho forja para ocultar as enfermidades da alma, fazendo-as parecer belas e nobres.
Mas há esperança:
Quando estiver unido a Vós com todo o meu ser, em parte nenhuma sentirei dor e trabalho. A minha vida será então verdadeiramente viva, porque estará toda cheia de Vós. Libertais do seu peso aqueles que encheis. Porque não estou cheio de Vós, sou ainda peso para mim.[20]
Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.[21]

         E ainda que o acusem de moralismo, não é o pedante quem encontramos nas Confissões, senão o homem honesto que se abre em público à devassa de suas fraquezas:
Mandais-me, sem dúvida, que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da ambição do mundo... Mas na minha memória vivem ainda as imagens de obscenidades que o hábito inveterado lá fixou. Quando, acordado, me vêm à mente, não têm força. Porém, durante o sono, não só me arrastam ao deleite, mas até à aparência do consentimento e da ação. A ilusão da imagem possui tanto poder na minha alma e na minha carne, que, enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a ações a que, nem sequer as realidades me podem persuadir.
Meu Deus e Senhor, não sou eu o mesmo nessas ocasiões?..
Onde está nesse momento a razão que resiste a tais sugestões quando estou acordado e permanece inabalável, quando as próprias realidades se lhe introduzem?[22]

Acusam-no de exagero e rigorismo, mas ele está a todo o momento confessando não praticar um regime estóico. Em relação à gula comenta:
Sendo a saúde o motivo do comer e beber, o prazer junta-se a esta necessidade... Ora, o limite não é o mesmo para ambos os casos, pois o que basta à saúde é insuficiente para o prazer...
Ouvi ainda outra voz “Aprendi a contentar-me com o que possuo; sei viver na abundância e sofrer a penúria. Tudo posso naquele que me conforta”[23] Eis como fala um soldado dos acampamentos celestiais, que não é o pó que nós somos.[24]

Esse é um dos inúmeros trechos em que Agostinho revela sua reverência absoluta por Paulo. Aqui também se descreve a imoderação com conhecimento de causa, e o fato de transparecer sua humildade diante do apóstolo dos gentios revela a dificuldade de seguir-lhe o exemplo. “Quem será, Senhor, que não se deixe arrastar um pouco para além dos limites da necessidade? Se alguém há, como é grande!... Eu porém não sou deste número.”[25]
Muito teríamos de dizer sobre o capítulo seguinte, acerca do tempo. Agostinho teve o mérito inolvidável de considerar o tempo como grandeza psicológica, conquista que só foi amplamente retomada por Kant, treze séculos depois.
Mas já esgotamos o espaço que poderíamos dedicar a essa monumental obra do santo de Hipona. A seguir veremos as linhas gerais de outra de suas obras principais, A Cidade de Deus, e a reaparição do célebre teólogo nos anos da Codificação.

(Continua em Agostinho e Kardec III)

Bibliografia:

AGOSTINHO, santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


[1] Santo AGOSTINHO. Confissões. Pg. 37.
[2] Santo AGOSTINHO. Confissões. Pg. 37.
[3] Santo AGOSTINHO. Confissões. Pg. 209.
[4] Santo AGOSTINHO. Confissões. Pg. 210.
[5] Salmos 4: 3.
[6] Salmos 4: 6.
[7] Salmo 4: 9.
[8] Salmo 117: 14,  27, 26.
[9] Salmo 118: 108.
[10] I Coríntios 2: 11.
[11] I Coríntios  13:12.
[12] I Coríntios 10: 13.
[13] Isaías 58: 10.
[14] Salmo 99: 3.
[15] Santo AGOSTINHO. Confissões. Pg. 264.
[16] Santo AGOSTINHO. Confissões. Pg. 265.
[17] Todas  as referências se encadeiam didaticamente no capítulo X.
[18] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 282.
[19] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 283.
[20] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 285.
[21] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 286.
[22] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 287.
[23] Filipenses 4: 4, 11, 13.
[24] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 289-290.
[25] Santo AGOSTINHO. Confissões.  Pg. 291.