terça-feira, 31 de maio de 2011

Benjamin Franklin, o pai espiritual da América


Quando as nações se organizam e assumem um papel efetivo na história, é invariavelmente por intermédio de certos gênios do campo político, cultural, econômico, religioso ou militar. A passagem de uma população de seu estado informe e caótico para a ordem de estado, com certos valores e leis instituidos, requer sempre, o que é comprovado pelo estudo histórico, o recurso do carisma pessoal e do sacrifício de alguns no instante crucial de fundação da pátria.
A vida de Benjamin Franklin é uma daquelas que mais servem de repositório inesgotável de aprendizado e admiração por parte daqueles que a analisam, reforçando a tese de que não é pelo acaso nem a qualquer um dada a glória de orientar um povo em sua marcha pelo deserto, rumo ao descanço na terra prometida.
De origem extremamente pobre, tendo de instruir-se por esforço próprio, trabalhando desde o início da adolescência, como era comum aos jovens da época, e saindo ainda muito jovem pelo mundo em busca de oportunidades de estudo e carreira, Benjamin expressava sem ressalvas os sinais do gênio universal que haveria de se tornar.
Escritor de panfletos, artigos jornalísticos e satíricos; pioneiro nas pesquisas sobre a eletricidade, figura de liderança em qualquer associação que gozou da graça de sua presença, patrono da insurreição contra a Grã-Bretanha em favor da independência, organizador e inspirador mor da constituição, filantropo destacado, moralista e delegado científico e diplomático dos EUA na Europa, o pai da pátria americana parece ter exercido não apenas todos os encargos de prestígio social e intelectual, como os fez sempre com uma força incomparável, o que garantiu os resultados duradouros de todas as suas diversas iniciativas.
A sociedade de ciências médicas de Paris teria pronunciado sobre ele: “Se um americano, um filósofo de terras selvagens, solucionou alguns dos maiores desafios da ciência europeia, a razão há de ser mesmo algo universal.”[1] Veja-se que até os franceses o elogiavam.
Ao invés de citar suas evidentes contribuições políticas, gostaríamos de destacar uma obra filantrópica que, embora com muito menos projeção, demonstra ainda melhor o caráter caritativo que logo lhe tornou respeitado em todo o país. Falamos da primeira biblioteca pública estabelecida nas Américas.
A organização da biblioteca da Filadélfia, por volta dos anos 1730, foi um dos eventos mais relevantes para o desenvolvimento da cultura americana, e uma prova do vigor dos ideais puritanos e iluministas no Novo Mundo. Sem a iniciativa de Franklin e outros amigos por ele selecionados, que não apenas organizaram, como inclusive doaram de seu acervo pessoal a maioria dos livros, a iniciativa jamais teria se concretizado. O espírito dos Estados Unidos dava aí uma mostra da iniciativa e da capacidade de associação comunitária que logo lhe garantiria o sucesso econômico e político que conhecemos. Em nenhum momento ocorreu aos idealizadores da biblioteca solicitar apoio de entidades governamentais ou instituições. Ao invés disto organizaram e financiaram todo o empreendimento de uma entidade pública, somente com o trabalho dos indivíduos, nem sempre abstados.
Naquela época, quase toda a ilustração política em língua inglesa estava limitada aos Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke, e mesmo este título era desconhecido da maioria dos americanos. Após a organização da biblioteca por Franklin, este tornou-se rapidamente um dos livros mais requisitados, e foi tão impactante a sua repercussão que nove dos delegados responsáveis pela assinatura da Declaração de Independência afirmam só ter lido a versão doada por Franklin.[2] Este fato é mais que suficiente para alertar-nos para as dificuldades gigantescas de se obter livros nas Américas do século XVIII. Os desafios enfrentados pelos latino-americanos devem ter sido bem mais graves.
A biblioteca da Filadélfia acabou tornando-se mais do que um repositório de livros; Franklin observou logo que parte do atraso científico da América se devia aos altíssimos preços da aparelhagem científica, cujos itens eram sem exceção importados. Para que o pesquisador americano não permanecesse impedido de prosseguir com seus estudos, a sociedade de amigos fundadores da biblioteca dispôs também uma linha de fundos para a compra deste equipamento.
Já é bem conhecido, por outro lado, o papel de Franklin como cientista. Sua célebre experiência com a pipa foi apenas o final de uma longa série de estudos com diversos materiais, o que só se pôde efetivar com aparelhos inventados e construídos por ele. A guerra entre as correntes empirista e racionalista acerca da eletricidade foi permanentemente desequilibrada em favor dos primeiros, tudo graças ao impacto do trabalho de Franklin. Por quase dois séculos (até as revoluções de Einstein), a filosofia foi expulsa do investigação científica; fato que, conquanto doa aos amantes da filosofia, foi extremamente benéfico naquele momento histórico.
Mais interessante do que seus inúmeros trabalhos caritativos, empresariais, científicos e comunitários são suas meditações éticas e religiosas. O cronograma diário do pai da pátria era dominado por oito horas de trabalho “obrigatórias”, onde naturalmente a obrigação era voluntária, pois ele era dono do próprio negócio, duas horas de intervalo para almoço, que incluía a leitura de jornais, um momento após o trabalho para a “questão do entardecer”, momento em que ele se perguntava sempre a mesma coisa: “Que bem fiz eu no dia de hoje?”. Em sua busca por uma disciplina de vida quase monástica ele estabeleceu também os horários inalteráveis para o sono, as refeições, a música e eventuais conversações.
Por volta desta mesma época, o sábio criou para si uma tábua de virtudes; mandamentos que ele se comprometia a seguir no melhor de suas forças, juízo e possibilidades. Começando pelas que ele considerava mais fáceis de cumprir (difícil dizer se para si ou para todo o gênero humano) e terminando nas virtudes heroicas da castidade e da humildade, que ele considerava só serem apresentadas pelos santos. Esta última teria uma única regra: “imitar as vidas de Jesus e Sócrates”. Regra que, no entanto, o pai da América considerava virtualmente impossível de se cumprir à risca.
Entre as virtudes primárias ele elenca o comedimento, ou moderação, e o silêncio, ambas essencialmente formas de autocontrole e disciplina. Mas através destas simples virtudes o homem pode não apenas educar-se para outras maiores como evitar inúmeros males para si e para os que lhe estão próximos.
Exatamente como o outro herói pátrio que analisaremos a seguir, Antônio Diogo Feijó, Benjamin relaciona intimamente a virtude ao dever cívico. A moralidade não é, para estes gigantes, uma regra de conduta ou amadurecimento pessoais, senão os meios para o bem geral. Ambos moralistas e políticos, combinação que nos soa tão estranha atualmente, acreditavam ser o papel dos homens reformarem-se o mais rápida e completamente possível, para que o destino longamente ansiado e preparado pela Providência possa se concretizar.
Daí o fato de ser para Franklin a humildade a virtude maior. Somente aqueles capazes de devotamento e abnegação podem empreender grandes feitos públicos. Se um indivíduo desonra sua nação, nos mais pequenos detalhes, se tem seus interesses ou mesmo ideias em primeiro plano, jamais poderá levar consigo a liderança moral da sociedade, estando suas obras fadadas a expirar na memória coletiva. Os grandes feitos só se eternizam quando escorados pela autoridade moral que a todas as almas cativa, em todas as épocas. Somente estes podem realmente alimentar a chama do ideal e do sacrifício coletivo com que se estabelece o progresso. Sem isto todos os líderes são agitadores e hipócritas, capazes de excitar e manobrar por um momento o ânimo das massas, mas desprovidos de força para arrastar consigo os corações ao martírio.


[1] Carla MULFORD. Cambridge Companion to Benjamin Franklin. Pg. 79.
[2]  Carla MULFORD. Cambridge Companion to Benjamin Franklin. Pg. 13.

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