segunda-feira, 11 de abril de 2011

A fé, mãe da razão.


Um nobre ditado romano diz: Volenti nihil difficile” o que significa aproximadamente “a quem quer, nada é difícil”. Essa é uma verdade controversa nos dias de hoje, e não é sem justiça que muitos se revoltam contra ela. Com todas as vantagens que temos em relação à Antiguidade, especialmente no tocante ao esclarecimento e à ciência, é notória a raridade com que se encontra hoje homens e mulheres dotados daquele caráter de mármore tão típico dos tempos de Sócrates e Cícero, João Batista e Paulo.
É por isso que uma exortação mais entusiástica nos soa tão inapropriada; pensamos querer, e uma vez que não logramos sucesso nos rimos do entusiasmo dos santos e mártires, dos estóicos e dos idealistas. Querer, para aquela espécie de homem que viajava a pé com uma sacola de figos à cinta, não se resume a desejar, como para nós, ou a empreender duas tentativas, com a índole revoltada a insinuar que o universo está a receber uma segunda oportunidade de se curvar ao nosso capricho. Há dois mil anos, ou mesmo há menos tempo, o querer pressupunha antes de qualquer coisa o sacrifício, a perseverança de toda uma vida, o renovar desgastante da luta frente a obstáculos diários, alguns deles já nem tidos como tais, tal a dureza de que se revestiam o povo no geral e os seus heróis em especial.
Imagine-se um Diógenes, que abandonou uma vida confortável para viver como um cão (daí o nome cínico, de sua escola, pois kinis em grego significa cão), dormindo ao relento, sempre seminu e faminto. São conhecidas as anedotas sobre seu encontro com Alexandre, sua caneca e seus passeios noturnos com a lanterna, que mais pela excentricidade do que pela admiração moral acabaram por se tornar lendárias. A verdade, possivelmente, é que esse pensador tudo sacrificou pelos outros, fazendo de si um exemplo da abnegação, do abandono material e do desprendimento de si. Uma vida absolutamente miserável, sustentada pela fé de que o seu exemplo haveria de incomodar o seu próximo e fazê-lo refletir.
Diógenes queria, assim como Sócrates soube querer a justiça e a verdade a ponto de tomar um cálice de veneno por elas; ou como o Cristo quis a reforma da humanidade a ponto de não se esquivar do suplício da cruz. Todos foram derrotados, de um ponto de vista material, porque o mundo realmente não se dobra à nossa vontade, mas todos são vitoriosos do ideal, e provaram que querer é perseverar sendo aquilo que se elegeu no íntimo.
Àquele que quer, nada é difícil, porque saberá transpor tempestades e dissabores, incompreensões e fracassos exteriores, vencendo, no entanto, quanto aquilo que interessa, a fidelidade à sua própria escolha. Mas este querer deve ser espiritual, o único compatível com nosso poder, circunscrito ao nosso império. Queira-se as conquistas mundanas, as posses de bens e pessoas, os títulos, e mesmo os triunfos serão temporários e efêmeros.
Nesta era de cupidez, mesquinharia e vaidade não é o querer que arrefeceu, mas o seu propósito e significado que foram corrompidos. Fora de si, o homem busca o que não lhe pertence, e fica entre o padecimento da decepção e o gozo ensandecido seguido pela perda. A vontade está espoliada de seu patrimônio, não porque abrandou-se a chama do espírito, senão porque os enganos do mundo deslocaram as suas forças para uma região sob a qual ela não exerce o seu império.
Fala-se no “segredo”, fórmula de sucesso dos vãos e dos gananciosos. Cientistas pseudo-sábios apresentam as maravilhas da “física quântica” em linguagem “espiritualista”. Tudo entre muitas aspas e com muitas ressalvas, pois se a ciência e a religião, a matéria e o espírito hão de encontrar-se numa grande síntese, esta só pode ser uma que integre suas diferenças, ao invés de subjugar a irredutível liberdade do espírito a uma magia materialista.
Mas ainda não é disso que queremos falar. Primeiro é preciso expurgar toda a sombra de animalidade dos temas espirituais. Vontade, liberdade, razão, são as partes mais nobres e depuradas das potências que podem servir às necessidades materiais do homem, como desejo, individualismo e astúcia. Feita essa separação inicial precisamos subir a um outro nível de discurso correspondente à elevação do objeto contemplado.
A fé, espiritualmente falando, é o poder pelo qual o indivíduo sustenta a sua iniciativa, seja ela uma ação física, moral ou puramente teórica. Sempre que o homem espera um resultado para as suas ações, precisa ele prestar oferenda de confiança a si mesmo e/ou a Deus. Se a força de vontade é a energia bruta que move toda ação, a fé é a postura existencial, voluntária, de confiar no êxito da empreitada. A fé não move os membros ou o pensamento, mas ela dá convicção intelectual, firmeza de espírito e segurança emocional para que a vontade se desdobre na direção almejada. Com a vontade o homem caminha, com a razão ele planeja o percurso, e com a fé ele se convence de que o viagem é realizável.
O oposto da fé não é a dúvida, e sim a desconfiança. A primeira é uma ferramenta intelectual que pode ter emprego positivo. A segunda é uma postura existencial que paralisa o indivíduo impedindo-o de agir ou, na melhor das hipóteses, diminuindo o seu empenho e dedicação. Duvidar não prejudica a fé; desesperar sim. E é perfeitamente possível manter-se em dúvida e, não obstante, lançar-se corajosamente num caminho incerto que se elegeu. A fé, aliás, prova a sua força na presença da dúvida, pois do contrário a sua convicção não encontra desafios.
Nenhuma escolha filosófica é possível sem a fé, porque a filosofia, enquanto questionamento radical acerca dos elementos e fundamentos primeiros, baseia-se completamente na liberdade interpretativa. Qualquer proposição de verdade é, segundo a filosofia, uma pressuposição, jamais um dogma. E uma vez que se admite o caráter volitivo e hipotético de todas as doutrinas, cada uma delas exige de seus partidários um voto inicial de confiança. Por mais que se afirme haver razões, experiências ou intuições pessoais que justificam a adoção de uma doutrina em detrimento das demais é inevitável reconhecer que os partidários de doutrinas opostas evocam estas mesmas prerrogativas, e a escolha está sujeita, em última análise, à confiança ou fé que o sujeito tem em seu próprio julgamento. Há motivos racionais para se ser isto ou aquilo, inclinações pessoais para tal ou qual concepção da vida, da ciência, da justiça, e se este impasse fala mais alto do que a confiança nos rumos assumidos, o desespero se instala, e nenhum fundamento mais pode ser lançado.
Por mais que a concepção vulgar de fé e razão instaure entre elas a cizânia, é filosoficamente impossível a existência da segunda fora da primeira. A eficácia da razão ao invés do caos, a confiança de que as regras de nosso entendimento realmente coincidem com as regras da natureza, não constituindo apenas uma impressão do nosso ponto de vista, e a convicção de que haja um valor intrínseco na ordem que a torne preferível à irracionalidade são problemas que os filósofos só puderam resolver através do estabelecimento de pressupostos fundamentais, proposições de fé.
Sócrates combateu o relativismo dos sofistas postulando a fé nos critérios e princípios lógicos de julgamento. Ele demonstrou que essa confiança na razão é uma questão de opção, e que não pode ser imposta dogmaticamente, mas que sem ela não se poderia encontrar regras imparciais segundo as quais o conhecimento pudesse ser avaliado. Para que se possa questionar e debater livremente é preciso que os princípios da argumentação sejam independentes das pessoas envolvidas nelas. Em outras palavras, precisam ser universais.
Descartes resolveu sua dúvida radical postulando a existência de um Deus garantidor da eficácia da razão. Se não houver esta pressuposição de fé, segundo ele, seria impossível escapar da circularidade destrutiva da dúvida metódica. A razão não elimina a dúvida, e não pode enfrentá-la com a força da persuasão argumentativa. A validade da razão precisa ser postulada, acreditada por princípio, para que o seu poder de convencimento passe a valer.
Kant operou sua famosa crítica da razão reconhecendo que a escolha entre desconfiança ou confiança no conhecimento é uma escolha pragmática. O conhecimento é válido porque assim nos parece, e porque se não o for não podemos prosseguir com empreendimento algum. Não podemos jamais saber como é a verdade, mas, limitados à nossa perspectiva humana, podemos ao menos trabalhar com o que nos parece ser.
Essa fé não é sempre nem necessariamente uma fé em si mesmo apenas. Ela pode ser e frequentemente é uma fé em sentido religioso, uma fé metafísica na estrutura da natureza, na garantia de um Deus bom e justo, uma pressuposição de que um espírito criador não poderia incutir em nós uma inteligência falha e sem correspondência com a verdade.
Assim como há razões para se ter fé, é preciso fé para se ter razões, de modo que a convicção proporcionada pelo entendimento e a convicção no próprio entendimento se dependem e alimentam mutuamente. Os que crêem prescindir da fé por possuírem a razão cometem assim um atentado lógico aos fundamentos de suas convicções, pois tudo o que for eleito como critério tem o crédito que lhe for atribuído voluntariamente, por fé.

3 comentários: