quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Metafísica da subjetividade: Metáforas para o espírito.


        A desintegração do sujeito iniciada por Nietzsche e pelos antropólogos culminou na perda da dimensão íntima, ao menos na meditação filosófica. Desde o século XX vigora a visão do homem “como ele é”, sem os encargos de projeções idealizadas, mas essa é uma visão limitada por seus próprios (e muitos) pressupostos ideológicos. A pauta filosófica não é a da observação imparcial, mas a de uma que, para ser “científica” e “madura”, precisa ser antirreligiosa, amoral e integralmente relativista quanto à estética e o conhecimento. Essa falsa objetividade de análise já recebe, contudo, a sua merecida parcela de crítica, especialmente por parte de um movimento de restauração da metafísica que alguns nomeiam como Metafísica da Subjetividade, linha que se baseia no resgate do foco principal da tradição filosófica moderna, representada por Descartes.
            O bombardeio mais pesado contra esta tradição foi lançado por Heidegger em seu programa de combate intensivo à metafísica ocidental. Nele Heidegger pretende um movimento épico e teatral, bem ao estilo de Nietzsche, de puxar o véu que encobre dois mil e quinhentos anos de mentiras e enganos, véu que é representado pela metafísica de Sócrates ao século XX, e que encobre justamente o problema real da filosofia, o de que somos finitos, o de que só temos contato com um ser que se apresenta em todas as suas partes como imediato e dado, e de que toda a especulação, por mais racional que seja, não senão uma fantasia sobre um outro estado de ser que nunca experimentamos. Como é evidente, essa crítica não apenas desonra os vinte e cinco séculos de atividade intelectual humana, fazendo o cortejo de sábios de todos os tempos passar ou por uma trupe de bobos, ou por uma gigantesca conspiração contra a verdade, mas também nega um campo vasto da experiência, provavelmente maior do que qualquer outro, que é o da vida religiosa.
A crítica de Nietzsche a Descartes é a de que este teria inaugurado um ser apartado do real, um ser transcendente e abstrato, um sujeito puramente espiritual em oposição ao mundo e à vida. A nova metafísica não quer escamotear tanto quanto fazer justiça a essa interpretação. Nela o sujeito de Descartes não se opõe ao mundo, mas o mundo é que se constitui de dois princípios, sujeito e matéria. Nossa experiência do mundo nos informa de uma realidade material e de uma realidade psicológica, como Nietzsche e Heidegger percebem, mas o enfoque no meio ou na relação entre ambos, que a ontologia de Heidegger como a do materialismo consideram obrigatório, não é mais do que um enfoque possível. Ainda mais grave, quando este enfoque pretende destruir e negar todos os produtos da introspeção ele compromete seus próprios resultados, já que a introspeção é constitutiva da realidade, do mundo, ainda que limitada à sua parte subjetiva.
Uma análise ontológica ou existencial do “ser no mundo” não pode prescindir ou opor-se à uma análise da subjetividade sem deixar de ser existencial e ontológica. A intencionalidade que revela uma constituição do ente psicológico como inteiramente voltado para objetos é veraz, mas não trata senão da periferia da subjetividade, de seus membros mais grosseiros, por assim dizer, onde a subjetividade está em contato direto com o mundo. Isto deixa em sombras, para usar um termo de Jung, o núcleo da subjetividade, que é a parte necessariamente mais afastada da instrumentalidade psicológica que se volta para o corpo e o mundo.
O materialismo peca ainda mais ao querer afastar-se até mesmo da existência, o espaço de ligação entre sujeito e objetos, buscando antes falar da matéria “em-si”, ignorando todas as exigências críticas do conhecimento.
O que os novos metafísicos da subjetividade, em especial Dieter Henrich, perceberam foi que a desconstrução do sujeito em favor de esferas mais afastadas da experiência, a da realidade material e existencial, produziu uma respectiva perda de identidade e uma diluição da pessoa humana em suas funções instrumentais e relações sociais. Esse afastamento se justifica por uma revolta contra o sujeito extramundano da filosofia moderna, mas esse não é, segundo Henrich, mais que ilusório e provocado por uma ânsia de objetificar a filosofia, tornando-a ciência, ou submetê-la a antropologia.
Reafirmar a irredutibilidade da experiência subjetiva não é, portanto, produzir um sujeito extramundano, apenas reconhecer a prioridade da filosofia sobre as ciências e a hermenêutica, já que é pela subjetividade em última instância que se julga o mundo, nosso lugar nele e os critérios para qualquer análise supostamente exterior da própria subjetividade. E nesse tocante não basta a subjetividade engajada de Heidegger, que precisa ser apanhada em seu próprio movimento, mas é imprescindível acertar as contas com a fundamentação do saber pressuposta por tais análises fenomenológicas ou hermenêuticas.
O sujeito não é extramundano, ou irreal, mas ele certamente é algo de radicalmente imaterial; sua existência não se permite conciliar com a mecânica, e tudo o que sabemos sobre esta é subsidiado por informação sensorial, um estágio ulterior e altamente incerto. Essa é a grande descoberta de Descartes e seu método introspectivo. A filosofia tem de ser metafísica, pois as regras da subjetividade, os critérios e princípios que regulam a interpretação da experiência, são a parte mais próxima do juízo, enquanto as regras da matéria, da fisiologia e da psicologia empírica já são derivadas daquelas primeiras, e qualquer virada interpretativa que pretenda pôr o sujeito sob o escrutínio desses elementos derivados tem de falsear de alguma forma as origens subjetivas de sua própria pressuposição.
Esta discussão toda gira em torno da repercussão que metáforas com ao do timoneiro produzem sobre as diferentes inclinações psicológicas.
Nietzsche e Heidegger se revoltam contra a ideia de que um piloto caído dos céus conduza o corpo como a um veículo, mas sua solução é pior, ao considerar o ser como sistema fechado composto por barco e tripulação, onde esta última, a parte subjetiva, não sobrevive no oceano do ser sem o seu corpo, a parte objetiva, eles concluíram que a subjetividade possui uma existência real (em função do barco) e uma fantasmática (as vidas íntimas dos tripulantes).
Ainda seguindo esse exemplo o materialismo privilegia, na subjetividade, a equipe dos remadores, que pelas suas mãos sentem o peso e a fluidez da água, conforme lhes é comunicado pelos remos (os órgãos sensoriais), além de, é claro, imprimir movimento à nau. A vida do capitão é questionada, bem como sua autoridade, e o vigia no topo do mastro é tido por elemento efêmero, dispensável ou imaginário. O materialista sabe perfeitamente que há uma diferença entre o barco e a tripulação, o corpo e a psicologia, mas atribui à tripulação um ser emergente a partir do barco, já que este como matéria inanimada se associa melhor ao mundo que a todos circunda; suposição metafísica muitíssimo audaciosa, para dizer o mínimo; sabe também que a água, ou o ambiente, só é acessível à tripulação por intermédio de instrumentos sui generis, os remos, âncoras e outros aparatos. E que as impressões da tripulação, subjetivas, podem não corresponder bem à realidade da água. Neste exemplo que oferecemos, nossa subjetividade jamais poderia saber que a água é molhada, salgada, fria ou quente, o que nos parece uma informação essencial sobre sua natureza. Não obstante, o materialista confia na experiência secundária dos aparatos para concluir que a tripulação sabe, não apenas o suficiente sobre a água, como boa parte do que ela verdadeiramente é.
Com o existencialismo surgiu uma perspectiva inteiramente nova. Identificando a bruteza dos remadores e o afastamento do vigia em relação à realidade horizontal do barco, concentrou-se no capitão, o ser plantado no convés, mas que tem uma visão do conjunto. Sua função é dar rumo ao barco, e para isso organiza as demais partes da tripulação. Ele é a intencionalidade no quadro maior da subjetividade. Certamente um elemento chave, mas que sozinho não permite as conclusões tiradas pelos existencialistas, no sentido de anular a perspectiva do vigia.
A tradição metafísica, que é a filosofia propriamente falando, concentrou-se sempre no vigia no topo do mastro. A sua existência é inteiramente diferenciada da do restante da tripulação que vive sobre o convés. Ao passo que o capitão distingue-se dos demais pela função, compartilha com eles a perspectiva horizontal. Em outras palavras, as partes da subjetividade que se orientam para funções práticas de sobrevivência, interação, entretenimento e mesmo conhecimento, estão fatalmente condicionadas a estas. Somente o vigia goza de uma propriedade peculiar da visão que lhe permite discernir, mesmo que vagamente, o plano geral do navio e da viagem. Somente ele percebe a confusão reinante abaixo de si, divisa os escolhos no rumo e as sutis variações atmosféricas. Este espaço mais íntimo da subjetividade é o responsável pela eleição dos valores, pelos critérios e princípios do saber. Por força de sua própria perspectiva diferenciada, ele pode e deve sintetizar o sentido da viagem e prescrever alterações na rota.
Entretanto, como é ao grupo no convés que cabe a decisão final, como é a parte funcional da subjetividade que age, é perfeitamente possível ignorar os conselhos do vigia.
A razão vivencial que se bate com as tarefas concretas do manejo, da percepção e da locomoção nada quer saber daquela razão que tudo vislumbra das alturas, relativamente indiferente aos problemas do convés. A vingança da tripulação contra este elemento imune às agruras do dia-a-dia foi ignorá-lo como porta-voz da irrisão, mas com isso o navio apenas perde o auxílio e a fiscalização de sua visão diferenciada, aquela mesma que que o priva dos descaminhos e de enormes perdas de tempo.
A razão “livre” do século XX produziu filósofos capazes de apoiar o nazismo e o comunismo tão bem como o capitalismo mais destruidor e as fugas da realidade proporcionadas pela contra-cultura. Idolatra-se hoje os pensadores de Frankfurt, que confessavam só escrever sob efeito do fumo, e os relativistas absolutos que renegam séculos de edificação intelecto-moral. 'Verdade' tornou-se palavra proscrita no vocabulário destes pseudo-sábios, e moral ou valores estão abaixo do ridículo.
A função da subjetividade, de fiscalizar e significar a vida, é considerada preconceito cultural obsoleto, dando lugar a um pensamento que fala sem cessar da identidade, ao passo que jamais logra dela se aproximar.
Mas o distanciamento da subjetividade pura não significa a sua dissociação do restante do patrimônio subjetivo. O mastro está plantado no convés, e o vigia pertence ao sistema total do navio tanto quanto qualquer dos tripulantes, destes dependendo e a estes orientando. É pelo seu afastamento da esfera instrumental, temporalizada e contextualizada, que é possível a sua visão peculiar, essencial na economia da nau. 
            A metafísica jamais tratou de produzir um sujeito extramundano, apartado do ser, senão de dar voz a uma parte diferenciada da subjetividade. O esforço da metafísica por encontrar um terreno seguro, que permita o julgamento do restante de nossos conhecimentos e ações, deriva da percepção empírica de que esta perspectiva é possível, natural e mesmo automaticamente dada.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O erro de Nietzsche


       Um dos problemas capitais enfrentados pela filosofia hodierna é o de definir sua própria fase de existência. Afinal, o que significam as divisões em filosofia moderna e contemporânea, tal como se no-las apresentam no quadro didático do magistério? Seria a filosofia contemporânea marcada pela pós-metafísica, ou pós-modernidade; mas nesse caso, o que exatamente resta de filosófico na filosofia, se ela assumidamente renuncia ao esforço de remontar às causas últimas e sintetizar o real numa fórmula compreensível?
         É tão precária a divisão da filosofia em etapas que os especialistas discutem ainda seriamente onde começa e termina a Era Moderna. Certamente a Modernidade cultural se inicia no século XVII com Bruno, Descartes, Bacon, Galileu, Copérnico (a recepção dele, pois a pessoa viveu antes) e Kepler, ou melhor dizendo, com a revolução científica, que acompanhou também o processo estético-cultural de formação das línguas nacionais. Bem mais difícil é saber se a filosofia acompanhou imediatamente esta revolução, ou se, como pensam alguns, permaneceu escolástica e subordinada à teologia até Hume e Kant, mais de um século depois. E isto é essencial para definir de quem a filosofia contemporânea quer se diferenciar.
         Na visão mais ortodoxa a modernidade filosófica se enquadra entre Descartes e Hegel, aproximadamente, período marcado pela metafísica da subjetividade. Cum grano salis, os pensadores deste período compartilham o ponto de vista subjetivo da fundamentação do saber e do ser, terminando por identificar a ambos. A partir do positivismo, do marxismo, da psicanálise e, com mais propriedade filosófica e profundidade, de Nietzsche, inicia-se o processo de crítica antropológica da metafísica moderna, substituindo-se as certezas metafísicas por explicações sociais, econômicas, linguísticas, psicológicas, etc. Se com Comte e Marx a filosofia foi “substituída” pela “ciência” social - ou, mais corretamente, um primeiro esboço dela -, ocorrendo o mesmo em relação a Freud, com Nietzsche vemos a implosão da filosofia a partir de sua própria autoanálise, ainda que com forte comprometimento do reducionismo antropológico. Nietzsche decretou o erro de Descartes como sendo a absolutização do sujeito em uma forma pura, imaterial, e extramundana, e a metafísica que se lhe seguiu nada mais seria do que uma insistência nessa elevação esquizofrênica da subjetividade ao estado divino, puro.
O jovem Nietzsche

         Tal diagnóstico se cercou não apenas de toda a vasta crítica antropológica disponível, como da análise do próprio Nietzsche sobre os processos de abafamento cultural empreendidos pela tradição cristã. Com sua invulgar erudição, Nietzsche discerniu perfeitamente os movimentos da arte, da religião e da ciência na Antiguidade clássica e em sua mutação no ideal ascético estóico-cristão, vendo nisso um processo de decadência, o que não é de todo incorreto.
         Nesse particular a afirmação cartesiana de um purismo da subjetividade soou-lhe como retrocesso ou continuação acrítica do pensar medieval, pelo que a condenou duramente. Nietzsche viu em Descartes a desumana separação entre espírito e corpo, entre intelecto e vida, entre sujeito e mundo, reivindicando um retorno à vitalidade de uma filosofia comprometida com esta existência, a concreta. Segundo o célebre teocida, ao contrário de uma alma matemática, puramente abstrata e em oposição ao corpo, era preciso resgatar o ideal heroico grego de uma alma dotada de paixões, de pulsões vitais, de amor pelo corpo e pelo mundo. O espírito para Nietzsche é o regulador da saúde humana, a sensibilidade absolutamente encarnada que frui ao máximo a dor e a alegria, a beleza e a tragédia da existência. Por isso mata ele o Deus arquiteto, o puro intelecto, em prol de um retorno dos deuses gregos da música e da dança, do sorriso e da lágrima, deuses, enfim, que afirmem a vida humana, ao invés de a negar.
         A belíssima contribuição de Nietzsche à reavaliação dos erros do cristianismo cultural convive, entretanto, com um erro capital, a saber, o de malbaratar a compreensão correta da subjetividade cartesiana e, por consequência, de toda a metafísica moderna. Enquanto Nietzsche e seus parceiros, os sociólogos e psicólogos reducionistas, viam na metafísica da subjetividade um mero rearranjo das concepções escolásticas e platônicas, a crítica mais moderna resgata já em Platão e especialmente na metafísica moderna o sentido preciso da subjetividade, não como elemento isolado, mas região distanciada ou profunda da vida mental.
         O que incomodava aos críticos do século XIX e XX era naturalmente a concepção de imortalidade da alma e a sua oposição ao corpo, bem como a consequência ética de que a vida não se justificava na existência atual, mas somente em referência a uma outra. Ora, os sociólogos queriam esgotar o drama da existência na realidade socioeconômica atual, o mesmo valendo para a psicologia em seu campo de ação. O que a nova visão da metafísica demonstra, no entanto, é que esse medo materialista não tem razão de ser diante da visão mais completa e acabada da subjetividade, visão esta que estava implícita em toda a tradição metafísica.
         A crença na imortalidade da alma, ou sua defesa racional, não é mais do que um momento secundário da percepção compartilhada pelo materialismo de que há uma esfera subjetiva irredutível aos processos explicativos da realidade material. O que mesmo o naturalismo mais duro dos dias de hoje admite, uma “certa dificuldade” de reduzir o subjetivo ao fisiológico, é a atestação empírica de que há uma duplicidade ontológica radical, talvez intransponível. É com base nessa percepção universal que metafísicos desde Pitágoras afirmaram a possibilidade, quando não a certeza da, imortalidade, já que a constituição da subjetividade é, aos olhos de todos, distinta da constituição transitória e puramente formal da matéria. Uma vez que o sujeito não está sujeito à causalidade mecânica, identificando intuitivamente em si o livre-arbítrio, não tem o seu ser determinado pela sua forma, sentindo-se essencialmente como sensível, intencional e referencial, conclui-se tão somente quanto a sua não sujeição às regras do corpo, como o ser perecível.
         Mas enquanto esta conclusão tem força de prova para o racionalismo, de diversos tipos, é bem verdade que isto não basta para concluir favoravelmente a sua existência de fato. Nisso religiosos e materialistas estão errados. Há um argumento racional e imbatível em favor da existência da alma, e isto têm de reconhecer os materialistas, mas esse argumento pode ser puramente válido no âmbito especulativo, sem que se constate sua vigência na realidade, e isto têm de reconhecer os religiosos.   
       A solução ortodoxa da religião foi pressupor, pela fé, um bom Deus que garante o acerto de nossos juízos. A solução espírita foi buscar uma base empírica para a sugestão puramente especulativa de imortalidade. Em ambos os casos o materialista pode reagir: negando-se a depositar fé no bom Deus, ou questionando a força das evidências empíricas apresentadas pelo Espiritismo e pela pesquisa psíquica em geral.
         O que o materialista não pode fazer, contudo, é confundir o recurso do religioso ao argumento de fé ou a uma convicção empírica na veracidade do argumento da imortalidade com uma crença ingênua e/ou psicológica na sua imortalidade pessoal. Foi precisamente o que Nietzsche fez em relação a Descartes. Tal como Marx, Freud e outros pensadores antropológicos, reduziu o argumento filosófico à condição de crítica externa, depositando não apenas a razão do dualismo cartesiano em motivos culturais e psicológicos, como ignorando a fonte empírica, inteiramente não cultural e não psicológica da dupla constituição do ser.

(continua em Metafísica da Subjetividade)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pontos metafísicos do Espiritismo


As críticas de Kardec aos sistemas especulativos produziram uma impressão errada sobre sua postura diante da metafísica. É comum interpretá-lo como filosoficamente alinhado ao positivismo, doutrina francamente inimiga da metafísica. A maioria dos estudiosos da filosofia espírita, contudo têm como certa a separação de Kardec das correntes filosóficas de sua época, o que se justifica não apenas pela insistência no modelo próprio, que ele definia “filosofia espiritualista”, como igualmente pela ausência de um posicionamento mais claro em relação àquelas correntes então em voga. – Houve quem por isso o enxergasse como um autor avesso à filosofia.
Uma filosofia prática como a de Kardec, conforme expusemos no artigo Qual é a filosofia espírita, não precisa lançar sua própria fundamentação teórica, embora sempre pressuponha alguma. Ora, a filosofia pressuposta pelo Espiritismo jamais poderia ser a positivista. Em primeiro lugar porque o progresso no positivismo é substitutivo: da mentira para a verdade, enquanto no Espiritismo é melhorista: verdades intuídas e expressas por alegorias se confirmam e aperfeiçoam com a chegada das ciências. Em segundo lugar porque o Espiritismo acolhe explicitamente a noção religiosa de revelação. Por fim, mas não por último, porque o Espiritismo depende inteiramente de certos “pontos metafísicos”, tidos como superados pelo positivismo. Este também é um dos motivos da condenação de Kardec por parte de outros pesquisadores do espiritismo ao longo do século XIX, já que ele agredia a concepção positivista e cientificista da época ao lançar mão de elementos de metafísica que lhe permitissem formar uma filosofia geral ao invés de permanecer na experimentação física.
Kardec também declara na introdução de O Livro dos Médiuns, que antes de tornar alguém espírita é preciso fazê-lo espiritualista. Isso não nos deixa espaço para dúvidas; a filosofia de fundo do Espiritismo é o espiritualismo, doutrina essencialmente metafísica. O positivismo adere ao corpo teórico espírita como contributo metodológico ao processo propriamente científico ligado à mediunidade.
Convencidos de que o Espiritismo é filosofia espiritualista, precisamos ter diante dos olhos o quadro do espiritualismo francês de princípios do século XIX. Tratava-se de um espiritualismo genericamente amparado pela filosofia racionalista de Descartes, expandido pela meditação ética e psicológica do pensamento francês dos séculos XVII e XVIII, enamorado do Romantismo em ebulição, amadurecido pelo ecletismo e, por isto mesmo, associado às pesquisas culturais sobre religiões antigas.
A melhor forma de confirmar este diagnóstico é o levantamento dos pontos metafísicos do Espiritismo. E o primeiríssimo destes pontos é a certeza cartesiana.
Kardec pertence a melhor parte da filosofia francesa, que manteve as condições críticas da filosofia cartesiana sem recair na metafísica sistemática. Neste sentido ele está alinhado a Descartes, Pascal e Rousseau, e separado de Malebranche, Leibniz e Spinoza. A percepção de que o pensamento, como fato incontroverso da consciência, pressupõe sempre automaticamente um sujeito, apesar de extremamente sólida, constitui um posicionamento metafísico, já que o ceticismo extremo pode ainda fugir a esta conclusão.
Assim a afirmação da objetividade de um sujeito, para além de impressões epifenomenais ou vícios de linguagem, é naquela época tanto quanto hoje uma afirmação dos simpatizantes da metafísica. A diferença está apenas na predominância que esta visão tinha sobre a materialista.
Como em Descartes, o Espiritismo também se defende da ingenuidade racionalista evocando uma hipótese ético-epistemológica, a de que Deus não permitiria nosso engano em relação aos elementos essenciais do conhecimento. Com isto a fé na razão não é uma fé dogmática, mas postulada por uma esperança num Deus bom e inteligente que nos garante a saúde da razão. Em outras palavras, a razão assenta desde o princípio sobre a fé (ponto que é compartilhado pelo pragmatismo).
Incontáveis materialistas tentaram perverter esta relação identificando a “aposta razoável de Descartes” como uma recrudescência da filosofia medieval, em favor de um dogma da existência de Deus e da eficácia da razão. A fundamentação de Descartes permanece, no entanto, como pedra fundamental da filosofia moderna, sustentando duplamente a vigência da razão e a sua própria autocrítica, numa fórmula extremamente imparcial de “confiança logicamente necessária”.
A cosmologia espírita pressupõe igualmente a divisão de Descartes, por sua vez bastante platônica, entre o elemento extenso e o pensante. Mas, conforme disse certa vez meu mentor Luís Dreher: “É um erro comum atribuir a Descartes uma filosofia dualista, quando, na verdade, ele mantém um esquema de três substâncias, como todo bom jesuíta. A substância primeira é Deus, sendo as duas outras por Ele criadas e dele distintas.” Esta interpretação agrada ainda mais ao Espiritismo, que faz desdobrar de Deus o princípio material e o princípio inteligente, que podem se contrapor entre si, estando sempre, contudo,  subordinados a Deus. O que também não deixa de diluir em muito o dualismo, agora claramente unificado pelo vértice que a substância divina proporciona, resolvendo com isto inúmeros problemas metafísicos ligados à descontinuidade de um mundo dividido.
As especificidades da substância pensante e da material são também largamente expostas em O Livro dos Espíritos, sendo impossível classifica-las em qualquer outra denominação que não a de elementos metafísicos. O estudo dos argumentos de Kardec e dos espíritos demonstra também que o desenvolvimento destes pontos segue o método investigativo da metafísica tanto quanto sua definição final. Há todo um cuidado em diferenciar e contrapor propriedades ontologicamente conflitantes, unificando-as, ao mesmo tempo, em processo dinâmico de contraposição positiva. Os comentários dos espíritos parecem frequentemente abusar da dialética platônica e/ou da redução do conceito à função determinativa das coisas. Que outra forma de validar um tipo de filosofia poderia ser mais direta do que esta?
Não convém estender demasiadamente a lista, mas o Espiritismo também recorre sem reservas a conceitos absolutamente inverificáveis pela experiência e que só possuem importância especulativa. Exemplos clássicos são: mônadas, karma e o próprio períspirito (Afinal é uma terceira substância criada, ou, como parece, um ponto de contato entre a inteligente e a material?). Qualquer destes elementos é útil para a solução de problemas sistemáticos, e por isso mesmo têm sua justificação metafísica garantida, mas já não permitem mais aproximações entre o Espiritismo e o Positivismo com “P” maiúsculo, de Comte. Pode-se, quando muito, investigar a ligação entre o método de Kardec e o positivismo histórico do contexto da época.
Quanto à metafísica, ela sempre esteve presente nos trabalhos filosóficos dos estudiosos do Espiritismo, e porque o Espiritismo quer falar das causas últimas, sempre estará.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Kant e Kardec, mais do que o K em comum.


        Immanuel Kant, o maior de todos os filósofos da Era Moderna, tem uma recepção problemática por parte do Espiritismo. De uma lado ele atacou a metafísica das substâncias, que constitui um elemento prioritário da metafísica espírita (pense-se em fluido cósmico universal, perispírito, centros de força e coisas semelhantes), de outro lado ele fez uma crítica direta ao fenômeno da vidência, manifestado com grande alarde por outro Emanuel, o engenheiro e místico Swedenborg.
         Kant errou, como todos, em alguns pontos, mas tomá-lo por antagonista é mais do que uma má estratégia filosófica: para quem queira sustentar alguma forma de racionalismo moderno, é suicídio.
         Há boas razões, contudo, para afirmar que o uso de Kant por parte de adversários do Espiritismo é mais motivado por ignorância do que por qualquer outra justificativa, e o mesmo vale para o incômodo de pensadores espíritas em relação ao pensador de Königsberg.
         Se o mundo viu um homem imparcial nos seus julgamentos, este foi o eremita e cientista prussiano, revolucionário tardio do pensamento. Ao ouvir falar de um vidente sueco que recebia mensagens dos espíritos e se afirmava capaz de se desdobrar em viagens astrais, Kant se absteve de ambas as reações típicas dos demais seres humanos; nem condenou como louco o vidente, nem o recebeu instantaneamente como taumaturgo fantástico. Dedicou-se, ao contrário, a uma terrivelmente trabalhosa análise que objetivava aclarar a possibilidade de ocorrência de tais fenômenos, e da validade dos relatos a eles ligados. O resultado é o famoso livro Sonhos de um visionário.
         O livro, porém, não eliminou o problema. Alguns afirmavam ter visto nele a condenação definitiva do espiritualismo, pois o filósofo afirmava que tais condições jamais poderiam proporcionar conhecimento científico. Outros diziam ser Kant um defensor e mesmo um crente fervoroso nos fenômenos espirituais, já que ele afirmava serem muitos deles dignos de fé. Onde a verdade?
         A célebre frase que futuras edições colocaram na contracapa dá o tom de ambiguidade, e a dimensão do drama:

Qual Filósofo não esteve uma vez entre, o juramento de uma pessoa sensata e convicta testemunha ocular, e a resistência interior de uma dúvida inolvidável? Deve ele negar completamente a veracidade de todos os fenômenos espirituais? O que o deve conduzir aos fundamentos de sua posição acerca deste assunto.[1]
         Ao menos não se o pode acusar de não tratar seriamente a questão. O livro coleciona relatos de testemunhas dos fenômenos produzidos por Swedenborg, críticas e apologias de algumas das pessoas mais envolvidas no assunto, proporcionando grande erudição sobre o contexto da questão na época. Logo a mente sintética e crítica do pensador chega a uma definição conceitual extremamente econômica, subdividida em duas perguntas sem as quais nada se pode concluir sobre a mediunidade: 1- Qual é a natureza dos Espíritos? 2- Qual é a relevância objetiva de um testemunho pessoal, não verificável?
         O próprio Swedenborg não possuía um método, como Kardec posteriormente viria a elaborar, sendo apenas um médium muito ostensivo e homem de grande instrução. Assim, Kant não tem como colher do vidente caracteres filosóficos que lhe permitam uma confrontação. Ele é obrigado a fazer todo o trabalho filosófico "de fora", sem a presença do médium e sem condições similares que lhe favorecessem a solução das mais pequenas dúvidas. Kardec teve o privilégio de operar com condições bem mais cômodas, e somente por esse motivo já seria de se esperar que reunisse observações mais precisas que as disponíveis a Kant.
         Em suma, Swedenborg não tinha boas respostas para nenhuma das grandes questões levantadas por Kant, o que não fez com que o último desautorizasse imediatamente a doutrina do primeiro. O filósofo teve de trabalhar de maneira especulativa, usando os conceitos metafísicos vigentes de substância, alma, espírito, etc.
Em alemão a palavra para espírito, geist, significa também mente, e há um bloqueio cultural quanto a relacionar o espírito a um ser corpóreo, dotado de sensações, motricidade e localidade. Espírito é o intelecto, quando muito as memórias, e as expressões populares para aparições de espíritos são sempre interpretadas pejorativamente, relacionadas a fantasmagorias. Por isso, mas também por razões filosóficas, Kant julgava precária a definição de espíritos como seres perfeitamente corpóreos, com suas vestimentas e idiossincrasias, tais quais os relatados por Swedenborg. 
Semelhantes imagens pareciam a Kant mais compatíveis com a definição de alma, que evoca sempre noções mais ou menos materiais, embora de uma materialidade sutil, fluídica ou etérea. A conclusão sensata de Kant é a seguinte: ou os espíritos são materiais e, portanto, mensuráveis e comandados pelo princípio mecânico de causa e efeito, ou são imateriais e, assim, não há como vê-los, ouvi-los ou mesmo pensá-los, pois o que não é material não possui forma ou substância para serem apreendidas.
Pois bem, os espíritos de Swedenborg tinham forma, impressionavam os sentidos e pareciam de todo modo materiais, mas isso os colocaria na classe dos fenômenos estudados pela ciência, o que não se verificava. Caímos no problema da medição, pois como os espíritos não podem ser observados com método científico, suas aparições exclusivas a um ou outro indivíduo não podem ser confirmadas como “conhecimento”, são apenas testemunhos.
Esse julgamento é puramente epistemológico, não estabelecendo valores de bom ou mau, certo e errado ou verídico e inverídico. Dizer que algo não é científico não significa dizer que seja falso, e dizer que as pessoas não podem considerar o relato de Swedenborg como conhecimento válido, não significa desautorizá-las de crer nesse relato e viver conforme ele.
Na verdade é exatamente isto o que Kant recomenda em Sonhos de um visionário: enquadrar os relatos como testemunhos que são. Ele reconhece que muitos dos relatos de videntes são plausíveis, respeitáveis do ponto de vista moral e proferidos por pessoas do mais inquestionável caráter. Ainda assim, nada do que dizem pode ser verificado, de modo que só lhes podemos conceder ou não nosso voto de fé.
Kant conclui que, a respeito dos contatos com os mortos, deve-se proceder como em qualquer ocasião em que um indivíduo profere ter vivenciado experiências que ninguém mais teve ou pode ter. A plateia deve julgar com sua própria razão e sensibilidade a plausibilidade do relato, a idoneidade da testemunha e chegar a uma conclusão subjetiva, com valor de convicção, sobre ele. 
O filósofo tece até um exemplo alegórico bem-humorado: supõe-se que um náufrago chegasse a uma ilha deserta e lá visse coisas admiráveis. Improvisando uma jangada ele consegue escapar, mas não é capaz de dizer ao certo a localização da ilha, e outros não a puderam encontrar posteriormente. Os relatos do náufrago são sóbrios e detalhados, e ele é conhecido como ajuizado, consciencioso e honesto. Como devem proceder os ouvintes? Decerto alguns crerão no amigo, mas a ninguém ocorrerá acrescentar a narrativa aos livros de ciência.
Essa conclusão foi tida como fulminante contra as pretensões científicas do espiritismo pré-kardequiano, mas seria uma tolice temê-la ou empregá-la após o método desenvolvido pelo codificador. Aqueles que ainda hoje empregam o Sonhos de um visionário como crítica ao Espiritismo desconhecem os elementos mais básicos desta doutrina, enquanto que os espíritas que se sentem incomodados com a crítica kantiana falham em compreender o contexto, para o qual a conclusão do filósofo era corretíssima.
Médiuns houve muitos, fenômenos idem, sempre e em quantidade. Nada disso, entretanto, faz uma ciência, se não houver um cientista que organize os fenômenos segundo um método, e que os ponha à prova. Kardec foi o executor desse projeto árduo e ingrato de fundar uma ciência do oculto, ainda hoje estigmatizada, mas raramente criticada com rigor. Ele começou por duvidar, tão ou mais do que fizera Kant, dos fenômenos que se lhe apresentaram, e somente passou a tomá-los como base para sua nova ciência quanto respondeu satisfatoriamente aos dois problemas levantados por Kant.
Ao problema da substância, que desde o início atormentou Kardec, responderam os próprios fenômenos sob a força da repetição e da diversificação de experimentos. Ao princípio intelectual, que não pode responder à causalidade mecânica, nem apresentar forma ou mensurabilidade, e ao elemento material, dotado de todas estas características, observou-se o elemento intermediário que pode constituir o períspirito, um fluido ainda material, mas passivo de comando do espírito. 
As qualidades sui generis do proposto “fluido cósmico universal”, escapando das categorias dualistas da metafísica, oferece uma resposta teórica para o questionamento acerca da impossibilidade de contato entre espíritos e seres encarnados. Mas o mais interessante ainda é o fato de esse conceito ter-se desenvolvido por experimentação, não por especulação metafísica, e essa experimentação só foi possível porque Kardec resolveu o segundo problema kantiano, o da validade dos relatos dos médiuns.
Certificado empiricamente da veracidade dos fenômenos, o codificador do Espiritismo (só agora com a letra maiúscula do nome próprio) não se precipitou em declarar como ciência a sua coletânea de fatos. Elaborou uma ferramenta metodológica digna dos fundadores das ciências humanas para averiguar a universalidade dos relatos. Só assim podia eliminar a subjetividade dos testemunhos individuais dos médiuns e atingir a almejada imparcialidade para a conceituação dos fenômenos espíritas e das ideias que os espíritos por eles transmitiam. A ciência material dos fenômenos físicos e psicológicos produzidos pelos médiuns foi amplamente reproduzida desde a época aos dias de hoje, mas a ciência pura proporcionada unicamente pelo controle universal do ensinamento dos espíritos, e que produziu um verdadeiro sistema crítico para a comunicação com o outro mundo, é o traço peculiar dos esforços de Kardec.
Há, portanto, duas ciências espíritas, uma localizada entre a física e a psicologia, pertinente aos fenômenos mediúnicos, e uma outra que se aproxima das ciências sociais, ainda que inteiramente diferenciada, pertinente aos processos de controle estatístico e crítico das ideias apresentadas pelos espíritos.
Não há como saber qual o grau de familiaridade de Kardec com as críticas de Kant, mas estas últimas são inteiramente compatíveis com os padrões de qualidade e inovações metodológicas apresentadas por Kardec. Não havendo outra crítica igualmente precisa do Espiritismo como método científico, estamos a aguardar de seus opositores análises tão judiciosas quanto a de Kant.


[1] Imanuel KANT. Träume eines Geistersehers. Pg. 5.