quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Oráculo de Delfos: mil anos de experiência com a mediunidade

 Sobre a história antiga do oráculo pouco se sabe, e todas as informações se misturam a lendas. É quase certo que o monte Parnaso era originalmente um santuário de Gea, a deusa terra, e é impossível saber quando o templo de Apolo que deu fama ao lugar foi construído. Mesmo depois dessa reformulação, a história do oráculo é muito controversa, sendo que somente com Homero iniciam-se os relatos diretos e mais elaborados. Ainda assim, embora Homero e Ésquilo fossem certamente iniciados nos mistérios gregos, suas informações são muito pouco confiáveis, já que não podem ser distinguidas de elementos poéticos e fantasiosos típicos da composição de cenário das tragédias e dramas. Como critério geral convém considerar verdadeiro somente aquilo que é unânime ou muito frequente nos relatos de diferentes autores, mas com isto sobram pouquíssimas informações.
O que se pode afirmar com certeza é que o oráculo era dirigido por um sacerdote homem, responsável final pela intermediação com os devotos. Era esse sacerdote que interpretava a pítia, acertava os preços das adivinhações, quando eram cobradas, e decidia se a Pítia deveria ou não ser consultada conforme a gravidade e pertinência do assunto. Não por acaso, muitos, inclusive no mundo antigo, atribuíam as profecias e adivinhações ao sacerdote, apresentando a profetisa como sua marionete ou uma hábil atriz sob cuja fachada a direção do templo buscava manipular a elite grega.  A esta tese chamaremos “tese conspiratória” do oráculo.
Um segundo fato amplamente comentado é a existência de cavernas nos arredores do monte Parnaso que supostamente expeliriam um gás com propriedades alucinógenas. Embora muitos materialistas trombeteiem esta como a tão aguardada “explicação científica” para as profecias, ela foi na verdade levantada por Plutarco, que conhecia profetisas romanas que se valiam do mesmo recurso próximo a fontes termais e vulcânicas na Itália. A hipótese em geral é bastante sólida, pois desde a antiguidade remota fontes de gás vulcânico eram usados em diferentes países como santuários proféticos, e o entorpecimento provocado por ele pode sim ter um papel relevante nos ritos dos antigos gregos. Isso, inclusive, reforça os indícios de que o oráculo de Delfos teria sido anteriormente um santuário em honra a deusa terra, pois os locais escolhidos para esse mister eram preferencialmente os dotados de fissuras e cavernas profundas, ou fontes vulcânicas. Esta a que chamaremos “tese materialista” de explicação do oráculo.
Apesar de que as teses conspiratória e materialista possam contribuir para a compreensão de muito do que se sabe sobre o oráculo, sendo razoavelmente verdadeiras em certo sentido, elas não fazem jus às principais e mais famosas passagens da história que nos são relatadas pelas fontes mais sérias e criteriosas, como os filósofos e historiadores. Nenhuma das duas nos permite compreender como certas adivinhações improváveis eram feitas com sucesso e relativa freqüência. A ideia de um grupo supersticioso e mal-intencionado dirigindo a comunidade crédula é também ridícula quando se observa a infinidade de relatos dos maiores intelectuais gregos atribuindo ao oráculo as sentenças mais sábias e as ideias mais complexas. No mínimo, há que se convir que o grupo envolvido nas atividades proféticas compunha uma elite intelectual competente o bastante para ser reconhecida pelos maiores nomes da cultura grega.
Se por um lado há razões para suspeita quanto à natureza mediúnica das profecias, pois elas eram eventualmente pagas, envoltas em enigmas e simbolismos,  e inclusive se conheciam muitos casos de charlatanismo e encomendas de falsas adivinhações, é também verdade que em certas épocas Pítias e sacerdotes de Delfos foram admirados como sumidades intelectuais e referencias de honradez, e suas mais famosas profecias não poderiam ser plausivelmente creditadas ao charlatanismo ou ao delírio.
O papel da Pítia também está coberto de mistificações grosseiras, associado ao posterior culto das vestais romanas, que eram jovens geralmente virgens envolvidas em atividades estritamente ritualísticas. 
A Pítia grega era sempre eleita por volta dos 50 anos ou mais para um mandato vitalício. Quase sempre era esposa e mãe, não correspondendo às idealizações que a retratam como uma jovem virginal. Trajava, entretanto, um manto alvo como símbolo de sua pureza, pois era proibida de manter relações sexuais após assumir o ministério. Também era forçada a abandonar a família que tivesse, não podendo sequer revê-los. Habitava o templo e era a partir de então considerada noiva de Apolo, em forte consonância com a vida monástica das freiras católicas. As Pítias eram rigorosamente selecionadas pela conduta impecável, vida devocional e por “ligações conhecidas com os deuses”. Em geral, a figura da Pítia é a da mulher de meia-idade respeitada na comunidade por seus ascendentes morais e piedade, comumente uma conselheira da aldeia, de quem se sabia já ter tido visões ou ouvido vozes dos deuses.
Sobre o estado profético há inúmeras descrições, sendo a melhor deles a de Plutarco, que observa que nas Pítias mudanças expressivas de voz durante as mensagens. Outras fontes ainda certificam que a Pítia não falava por enigmas, e que os sacerdotes seriam responsáveis por converter a mensagem em uma charada. Essa informação é provavelmente verídica, pois fontes históricas seguras relatam a fúria vingativa dos reis e tiranos ao receberem profecias contrárias à sua vontade. Convertendo as profecias em charadas os sacerdotes produziam uma ambigüidade que garantia a sua imunidade contra os requerentes, transferindo para eles a responsabilidade de interpretar a profecia conforme a sua própria capacidade e/ou preferência.
 De uma certa forma poderíamos dizer que o oráculo falava por parábolas, ocultando assim o seu ensinamento para os mais sensatos.
Por suas prerrogativas de excelência na seleção das Pítias e sacerdotes, e por seu histórico de adivinhações corretas e recomendações prudentes, o oráculo tornou-se um elemento político e social irrefutável. Os reis ouviam atentamente os seus pronunciamentos, e a maioria das pessoas religiosas não cogitava de lidar com um assunto grave sem uma consulta, se ela fosse possível. 
Licurgo, rei de Esparta e organizador da constituição dessa cidade teria recebido inspiração do oráculo nas linhas principais da sua carta de direitos. Pausânias, também rei de Esparta, teria recebido mensagens semelhantes sobre as leis apropriadas para a cidade. Essa intimidade entre o oráculo e os reis é amplamente documentada por Aristóteles, Heródoto e Diodorus Siculos.  Parte da mensagem que o rei Licurgo teria recebido diz: “Tão longo honrardes as vossas promessas e oferendas ao oráculo, renderdes perfeita justiça uns aos outros e aos estrangeiros, dignificando pura e santamente os anciãos de vossa terra... Zeus senhor dos céus vos poupará e salvará... Somente o amor ao dinheiro, e nenhuma outra causa, há de destruir Esparta.”    
Também Atenas foi agraciada com uma profecia sobre sua época áurea, marcada pelo século de Péricles. Pouco antes deste período conclusivo para a cultura humana e no início dos embates entre Atenas e Esparta, o oráculo profetizou: “Ó Atenas, bastião guerreiro, após muito sofrimento, sacrifício e dor, se perseverares contra todos os infortúnios o teu nome será alçado à altura do voo das águias, onde permanecerá para sempre.”
O oráculo também fez fama por suas parábolas morais, das quais uma foi habilmente registrada por Sólon. Segundo esse sábio, o oráculo difundia ocasionalmente mensagens de teor instrutivo acerca das coisas divinas e das leis naturais, em caráter extraordinário em relação as suas atividades normais de adivinhação. Numa dessas histórias os irmãos Biton e Cleobis preparavam um carro para conduzir a mãe, sacerdotisa, de Argos para o templo de Hera. Por que as bestas de carga não chegavam, os irmãos tomaram sobre si os arreios e arrastaram a carruagem pelas cinco milhas e meia até o templo. A mãe maravilhada abençoou-os assim: Recebem a maior bênção que os deuses possam conceder aos homens.  Os irmãos voltaram alegremente para casa, e amanheceram mortos no dia seguinte (presumivelmente não pelo esforço). A lição que Sólon retira do episódio é a de que a libertação da vida terrena é a maior benção possível.
Heródoto conta outra passagem de cunho moral, quando Estrabo perguntou à Pítia se deveria mudar-se para Corinto, e ela teria respondido: “Corinto é abençoada com imensa fortuna, mas eu por mim ficaria em Tenea.” Referindo-se a humilde cidade em que Estrabo já vivia, e que era conhecida pela conduta digna de seus habitantes.
É conhecido que o oráculo possuía em seu pórtico a inscrição “conhece-te a ti mesmo”. Essa é, contudo, apenas a inscrição mais famosa. As três frases apareceram por volta de fins do século VI a.C. e são atribuídas aos sete sábios, mas o mais provável é que sejam dos próprios sacerdotes de Apolo com possíveis influências dos sete sábios do século VI. Além da sentença mais famosa havia também “Nada em excesso” e “Se vais confiante encontrarás rápido a tua destruição”.
Quanto ao poder divinatório do oráculo nenhuma passagem o atesta mais do que a do matuto que tentou ridicularizar o oráculo colocando um pássaro vivo em um saco, e propondo-se a perguntar ao oráculo se a ave estava ou não viva. Caso o oráculo afirmasse que sim, ele sufocaria a ave, e se o oráculo dissesse que ele estava morto, ele liberaria a ave viva. A Pítia foi capaz de captar-lhe o pensamento e proferiu: “Amigo, tu podes mostrá-lo vivo ou morto, pois a resposta está em seu poder.”
Pelos fragmentos destacados percebe-se o quão ricos são esses registros. A papirologia atual conta com mais de 600 registros diretos de perguntas feitas ao oráculo em quase oitocentos anos de atividade, contendo as respectivas respostas. Os assuntos são os mais diversos, desde perguntas pessoais sobre doenças e casamentos até projetos de fundação de novas cidades (notadamente Siracusa) foram apresentados ao oráculo. Também por inúmeras fontes históricas e poemas temos retratos mais ou menos fiéis deste que foi o centro da religiosidade grega em seu auge.
Seria desejável, e aqui deixo o convite, que uma pesquisa extensa fosse feita, incluindo todo esse material e organizando-o conforme as categorias desenvolvidas na Codificação. Daí surgiria um retrato muito claro dos procedimentos da prática mediúnica, do conteúdo do ensino transmitido através das Pítias e das implicações sociais, culturais e históricas dessa que afinal foi uma instituição pública, amplamente conhecida, de “endereço fixo” e duradouro a operar o intercambio entre o nosso mundo e dos deuses.



Referência:


PARKE, H. W.; WORMELL, D. E. W. The delphic Oracle. Oxford: Basil Blackwell, 1956.

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