sábado, 2 de outubro de 2010

O desafio atual da filosofia.



A estrutura cultural sobre a qual os avanços técnicos e sociais da Era Moderna foram edificados está em momento de crise. Este diagnóstico é tão mais certeiro quanto menos as pessoas parecem se preocupar com a filosofia e com todas as questões de valores que orientam as suas decisões práticas e teóricas. A ciência enfrenta impasses, a política ensandece, a sociedade se esfacela e a ordem moral é diluída, originando toda uma nova problemática.
Não há que considerar este processo apenas do ponto de vista negativo, pois ele tem o seu lado revolucionário, e toda a transformação exige destruição e reciclagem de elementos antigos. Mas imaginar que o grau sem precedente de “barbarismo cultural” praticado pela nossa era seja normal e justificável é também ignorar as tragédias dos povos ao longo da história.
Enquanto períodos de anarquia, relativismo e degeneração são comuns nas fases de transição pelas quais passam as civilizações, é também fato que nunca foram enfrentados tantos desafios quanto os criados pela tecnologia contemporânea. A poluição é o nosso refugo de todos os tempos, mas a indústria e os meios de vida atuais tornaram-na excessiva. A guerra é ameaça constante da humanidade, mas mesmo vivendo uma época de reduzidos conflitos, comparada a qualquer outra, os temores e ansiedades provocados pelas armas de destruição em massa e pela proliferação do terrorismo alimentam os instintos perenes de revanchismo e agressividade. A miséria, conquanto sempre tenha existido, faz contraste com a riqueza sem paralelo gozada não mais pelos governantes apenas, mas por populações inteiras, tornando ainda mais amarga e revoltante a experiência daqueles que vêem faltar todo o necessário em meio a uma sociedade que ostenta e desperdiça de maneira insana.
Entretanto, nenhum destes desafios seria insuperável se não fosse a conhecida estagnação de nossa capacidade moral, cujo desenvolvimento claramente não acompanhou o salto de entendimento e domínio da natureza. Não podendo dominar-se nem compreender-se, o homem intensifica muitas vezes os males provocados pela técnica e pelos meios de vida modernos, que poderiam ser atenuados ou inteiramente suprimidos com uma parcela não tão grande de bom senso e sensibilidade. Carecendo do fio da balança intelecto-moral, materializado no mundo pela tradição e técnica filosófica, a ciência confunde-se entre seu papel de investigação natural e o de ajuizamento quanto aos princípios do conhecimento e da ação. Ao passo que a maior parte da humanidade permanece agindo mais por instinto do que sob a tutela da razão, a parte esclarecida compra sem critério o engodo dos modelos explicativos da comunidade científica, que em muito extrapola o proveitoso papel da pesquisa científica, e descamba para as mais esdrúxulas cogitações filosóficas, carecendo, no entanto, para isto, de método e termos adequados que só a filosofia possui.
Em resumo, vivemos uma época em que a filosofia e a ciência se confundiram, não só porque a primeira falhou em diversas das suas especialidades quanto a uma explicação satisfatória da natureza, mas principalmente porque a segunda julgou ser isto motivo para tirar da filosofia o seu papel insubstituível de elaborar uma síntese explicativa do mundo. Tanto o público leigo quanto inúmeros cientistas especializados ignora que o materialismo, por exemplo, defendido como teoria científica, é em termos corretos uma teoria metafísica, ou seja, uma teoria que tenta dar explicação final para a realidade, e por questões de princípios, não por questões de fatos. Tanto o leigo quanto o cientista médio acreditam que problemas como o do funcionamento da mente, a existência ou não de livre-arbítrio e mesmo a existência ou não de Deus são problemas científicos, passíveis de serem solucionados com meio de explicações genéticas, neurológicas, astronômicas, evolutivas, etc; quando na verdade são problemas filosóficos que nenhum avanço nestas áreas pode decidir.
Mesmo que muitos cientistas estejam conscientes destas limitações de sua especialidade, a verdade é que uma ideologia da ciência estabeleceu-se na sociedade com a mesma força persuasiva que a ideologia católica exercia sobre o mundo medieval, dificultando o juízo claro e imparcial, já que tornou-se como que uma heresia discordar da ciência e tentar delimitar o seu papel ao campo dos fenômenos que ela se propõe a tratar. Neste contexto, a exposição, discussão e o esclarecimento básico sobre o que é e para que serve a filosofia se faz urgente.

2 comentários:

  1. Gostei muito do "O desafio atual da filosofia"o titulo já define muito bem o conteudo do texto.
    Parabéns, Eva.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom!
    Camille Flammarion,Charles Lancelin,Allan Kardec e tantos outros tiveram que superar o tanto possível o grande muro metafísico que os materialistas sempre construíram contra tudo aquilo que supere suas limitações e conceitos.

    ResponderExcluir