quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Yoga e Espiritismo: As tecnologias do transe.

      Georg Feuerstein foi até um dos raros comentadores ocidentais a reunir profunda experiência prática em yoga e o domínio intelectual da literatura em sânscrito sobre o assunto. Seu conhecimento seguro da filosofia ocidental também lhe dá uma vantagem especial sobre os autores indianos, que quase nunca conseguem transmitir as sutilezas de sua filosofia sem empobrecê-la ou fazê-la parecer esotérica aos olhos estrangeiros. Somos, portanto, imensamente gratos ao autor da Enciclopédia do Yoga e de A tradição do Yoga, e a sua definição de yoga como a tecnologia do êxtase tornou-se com toda a razão lugar comum, fazendo apenas uma modificação de nossa parte e apresentando as técnicas comparadas de Espiritismo e yoga como as tecnologias do transe, querendo com isto simbolizar suas técnicas exatas e eficazes de transcendência.
       Fora do desenvolvimento da tradição intelectual européia é difícil distinguir uma linha de pensamento que mereça o nome de ciência, mesmo que reconheçamos os muitos méritos de diversas doutrinas asiáticas, africanas e nativo-americanas. O yoga é, talvez, a única doutrina espiritual merecedora desse título, embora ainda com diferenças essenciais do método desenvolvido entre a Renascença e a Era Moderna. A explicação para o caráter especial do yoga está na cultura extremamente liberal da Índia, que sempre admitiu a investigação crítica, a dúvida, a diversidade de idéias e a importância do confronto entre teoria e experiência, mesmo nas épocas em que a Europa não gozava destas condições.  Se uma ciência pode, além disso, ser medida pelo seu poder prático de modificar a realidade, então o yoga merece ainda mais o título, pois os seus efeitos concretos são indubitáveis.
        Todas as religiões da Índia adotam elementos do yoga, e este é talvez o único ponto em que concordam, quando, de resto, estão em conflito quanto à existência de Deus ou dos deuses, de quem e como é ou são as divindades, e quais as suas relações com o mundo. Somente o yoga impôs-se, por força dos fatos que ele produz, como uma unanimidade, apesar das distintas interpretações que cada sistema aplicou a ele. 
        O Budismo, ao passo que rejeitou simplesmente tudo da religião indiana, exceto a idéia de karma/reencarnação, adotou todas as técnicas de yoga: a meditação, os mantras, os exercícios respiratórios e físicos, o pragmatismo e o empirismo. Os persas, geograficamente próximos da Índia, sempre receberam sua influência. Enquanto a religião Islâmica rechaçava qualquer influência filosófica ou teológica, os místicos persas abraçavam o yoga, absorvendo suas técnicas de transe e com elas constituindo o Sufismo, a mística muçulmana.
      Os exercícios espirituais que não possuem nenhuma influência do yoga testemunham igualmente ao seu favor pela imensa semelhança que revelam para com ele. O Estoicismo, a mística espanhola de Ignácio de Loyola e Santa Teresa D’Ávila, os pietistas, os quakers, os taoístas e os profetas hebreus; todos os grandes místicos compartilham o amor ao silêncio e ao isolamento, o ascetismo e a sobriedade, a concentração e a adoração que elevam a alma ao estado de êxtase. Reunindo todas as técnicas utilizadas por todos estes grupos, quase sempre com grande superioridade, devido ao estudo milenar e ininterrupto que os sábios indianos lhe dedicaram, o yoga é o vértice do conhecimento e da prática mística de toda a humanidade.
       Quanto aos praticantes, é indiferente se são ateus ou crentes, se oram para um santo vivo ou fixam-se somente em um som, se fazem esforços moralizadores ou se dedicam-se ao acúmulo de poder (os siddhis), todos concordam que o conhecimento relaciona-se à lei natural, não estando subordinado a crença. Naturalmente, cada praticante tentará justificar suas convicções pessoais dentro de seu método meditativo ou de ascese, mas concederá sempre que a técnica terá ao menos alguma eficácia para qualquer usuário. 
       Somente o materialismo impede a prática do yoga, pois sendo a ciência do espírito, fundada na investigação empírica do fenômeno místico e iluminativo, é impossível e ilógico exercê-lo sem convicção em uma realidade espiritual. Isto o praticante do Yoga não toma como dogma, mas como evidência derivada dos estágios mais elementares dos exercícios.
       Trabalhando a energia mental e sutil simbolizada pelos chacras, modificando sua sintonia espontaneamente através da disciplina respiratória, postural e psicológica, dominando os instintos e desejos através da intenção fortalecida pelos exercícios de controle psicossomático, o yogi certifica-se empiricamente da sua própria transcendência. Não existe nenhuma postulação da existência do espírito. Ela é simplesmente constatada e observada, tornando-se uma obviedade para os yogis.
O yoga das academias não lembra muito o dos ascetas indianos.
         O yoga é enfatiza também o livre-arbítrio. Mircea Eliade, o grande historiador das religiões, diagnosticou imortalidade e liberdade como os conceitos centrais do exercício iluminativo, e estava completamente correto ao fazê-lo. Ao contrário dos pensadores abstratos indianos, que eventualmente defendem uma visão de mundo determinista, o Yoga, bem como o Budismo e outros derivados, pressupõe e prescreve a liberdade por questão de princípio pragmático. A idéia de domínio sobre o corpo e a mente, de uma técnica disponível a todos, sem quaisquer privilégios, é sumamente libertária e coaduna-se inevitavelmente com a convicção de que o destino pessoal está em poder do indivíduo.
       O esforço pessoal e a conseqüente responsabilidade são os únicos elementos reconhecidos no processo iluminativo. O Budismo, por exemplo, é enfático ao afirmar que o seu caminho de oito passos é “perfeitamente praticável”. Ressaltando esse caráter pragmático e menos dependente de crenças e dogmas, os yogis de diversas escolas são unânimes na sua convicção de estarem de posse de uma técnica eficaz, no sentido pleno da palavra. Não existe motivo teórico ou moral para a prática. Nenhum yogi concordaria que a sua adesão ao método foi provocada por argumentação, sugestão ou imposição religiosa ou filosófica. Como bons empiristas, os ascetas indianos só reconhecem o motivo técnico para a prática: “Praticamos porque funciona. Recomendamos porque traz resultados.”
       Mas em que consistem tais resultados? É o que todos se perguntam. Poderíamos dizer resumidamente que o Yoga se divide em aspectos físicos, psicológicos e espirituais. No aspecto mais propriamente físico o Yoga objetiva comprovar a completa submissão do corpo ao espírito. Essa etapa, embora introdutória, é comumente supervalorizada, especialmente no Ocidente, porque os resultados visíveis da ascese são geralmente muito impressionantes, incluindo resistência ao frio e ao calor, capacidade de jejum prolongado, diminuição drástica das horas de sono por dia, resistência a dor, vigor e disposição ampliados, além da reconhecida capacidade de sustentar posturas desconfortáveis.
       Numa espécie de plano intermediário entre a mente e o corpo estão os exercícios respiratórios, que objetivam refinar o domínio do espírito sobre as funções físicas e mentais. A respiração é a interface físico-psíquica por excelência, pois ela é uma função intermediária entre os atos involuntários e os voluntários. Ao passo que qualquer pessoa está ciente de sua capacidade de alterar o próprio ritmo respiratório, a maioria das pessoas vive sem o fazer, a semelhança dos animais que respiram inconscientemente. O controle e a conscientização respiratória têm assim o duplo papel de revelar este elemento voluntário nos atos aparentemente involuntários e exercitar.
       Fio da navalha que separa a matéria do espírito, a respiração é o elemento chave para equilibrar a relação entre esses princípios. Se ela é automática, o indivíduo está entregue ao instinto e aos desejos animais, na fase inicial do seu progresso espiritual, se ela é profunda, serena e benéfica, a inteligência predomina sobre o instinto e a vontade sobre o impulso. Essa percepção não é exclusiva dos yogis, mas reflexo do senso comum sobre o ritmo respiratório. Em qualquer lugar ou época uma respiração descompassada, ofegante, o ronco e a apnéia noturna, ou até em vigília, são sinais de uma saúde comprometida e uma vida em desequilíbrio.
     Controlando uma função tão aparentemente involuntária quanto a respiração, aumentam em muito as chances de controle da mente, o próximo passo do yoga. Inaugurando a psicologia profunda três mil anos antes de Freud, os yogis certificaram-se de que a mente é assaltada por conteúdos simbólicos, relacionados a memórias, hábitos e desejos, geralmente inconscientes. Aqui também observa-se a uniformidade das práticas espirituais, pois todas elas em todos os países diagnosticam uma flutuação incontrolada da mente como o maior desafio da concentração, da oração e da meditação. 
         O yoga estabelece a disciplina física (incluindo sexual e alimentar) e respiratória como os pré-requisitos do saneamento psicológico, pois a vontade se fortalece pela ascese, e a consciência acostuma-se à vigília sobre os atos involuntários. Paralelamente é urgente a transformação ética do sujeito, sem o que a consciência de culpa e o estímulo constante aos vícios de que é portador permanecem em espaço confortável. Pela força dos elementos atávicos do automatismo humano, o relativismo moral é sempre uma ilusão, já que o nosso caráter primitivista impõe-se invariavelmente sobre as propostas salutares e equilibradas. Urge, assim, uma reforma moral profunda e permanente, para que o peso dos condicionamentos passados (karma) se transforme em herança positiva através da ação meritória.
       Pode-se dizer que essas três etapas já garantem o sucesso do yogi, e conduzem seguramente às demais. O cuidado e estado de alerta constante em relação ao comportamento físico, respiratório e a conduta moral transformam o sujeito de um repetidor inconsciente dos instintos e condicionamentos adquiridos a autor livre e ciente de todos os seus atos. A disciplina mental avança assim para a meditação, que é lograda sem maiores esforços quando a vontade já está fortalecida pela conduta reta e esmerada. 
        A conscientização quanto ao corpo, a respiração e a conduta ética também dão à consciência um poder de concentração inusitado, pois ela habituou-se ao esforço de vigilância, não sendo nem ludibriada pelo inconsciente nem cedendo aos primeiros sinais de fadiga em convite ao desforço. A mente focada pela meditação adquire clareza e profundidade, constância e desenvoltura do “lixo mental” que obstrui a mente destreinada. 
        Concluímos, portanto, que o Espiritismo reproduz as práticas e conceitos das tradições místicas e ascéticas universais, com particular semelhança em relação ao Yoga, e que o caráter desmistificador de ambas as doutrinas, juntamente com o fato de atingirem tantos pontos de concordância, contribui em muito para a validação de ambos como métodos, senão científicos, ao menos de eficácia cientificamente testável.


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Espiritismo no Islã


O Espiritismo apresenta-se como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal, segundo a definição de Kardec em O que é o Espiritismo, e isso pressupõe e exige a natureza universal desses mesmos fenômenos. Não é, portanto, o Espiritismo, comparável a qualquer conjunto de crenças religiosas, pois nenhuma delas coloca-se sob as mesmas exigências. 
Apresentar-se como ciência e filosofia separa-o conclusivamente das demais religiões, mas, ao afirmar-se como ciência, ele se restringe e coloca sob risco a segurança de seus postulados, os quais as religiões têm garantidos pelo dogma.
Dentre os inúmeros riscos a que se expõe uma religião com pretensões científicas está o de provar o caráter universal de seus fenômenos, e sua completa independência da respectiva crença neles ou numa filosofia que os apoie. Por isso é tão importante para os espíritas buscar a comprovação de seus pressupostos dentro de tradições religiosas, um hábito ressaltado nas coletâneas e artigos de Kardec na Revista Espírita.
Poucas coisas podem beneficiar mais uma hipótese científica do que descobrir a presença de seus fenômenos num ambiente em que eles são considerados impossíveis. Se a ciência em questão é acusada de depender de uma disposição cultural, nenhuma outra descoberta é mais alentadora do que a de que seus fenômenos estão bem enraizados numa cultura que a condena.
         É o caso de religiões que possuem uma postura declaradamente contrária a fenômenos espíritas, como o catolicismo e o islamismo. Encontrar os mesmos fenômenos ou os elementos de uma filosofia espírita num tal ambiente é depor fortemente contra a idéia de uma explicação cultural para sua existência. No presente texto, quero falar da presença inconfundível de fenômenos e de princípios filosóficos espíritas entre os muçulmanos, cujos conselhos oficiais negam a abominam os conceitos de reencarnação e comunicação com os mortos.
         Muhammed Iqbal, poeta, pensador e político influente do início do século XX propôs uma renovação espiritual do Islã, colaborando para a divulgação de místicos e filósofos muçulmanos dos séculos passados numa perspectiva espiritualista arrojada. Para ele cada partícula do universo é um “eu”, um espelho do Criador buscando o seu desenvolvimento.
Entre os grandes mestres espirituais do Islã está o persa Rumi, considerado por muitos o maior homem santo do Islamismo, abaixo do profeta Mohammed. Algumas de suas passagens, escritas por volta de 1250, apresentam não apenas idéias reencarnacionistas, mas evolucionistas, numa forma tão elaborada como só foi vista novamente no século XVIII. Rumi diz:
“Toda a forma que tu conheces tem a sua origem no mundo divino. Se a forma desaparece, isso não tem conseqüências, porque o original perdura... Não temas, a água desta fonte é ilimitada.
Quando tu vieste a este mundo dos seres criados, uma escada se fez diante de ti, de modo que tens de percorrê-la. Inicialmente tu foste um inanimado, então te tornaste planta; depois disso te modificaste em animal. Por fim chegaste a humano, possuidor de conhecimento, inteligência e fé. Depois te tornarás anjo. Então este mundo estará terminado para ti, e o teu lugar será nos céus. Melhora-te também até no estado de angelitude. Passe para a profundeza gloriosa, de modo que aquela única gota, que és tu, possa tornar-se um oceano.”
        
O caráter de Rumi era tão impecável que seus contemporâneos o chamaram de o homem perfeito, ou homem sem pecado. E seus escritos eram tão apreciados que um ditado foi cunhado com os seguintes dizeres: “Rumi não é profeta, e seus textos vêm dele mesmo. Não obstante, tudo o que escreve é tão sagrado quanto as próprias Escrituras reveladas.”
Rumi.
         A doutrina de Rumi se baseava na idéia de que toda a criatura é a imagem e semelhança de Deus e, portanto, espiritual e santa. Tudo é divino, e tudo está permeado pelo divino. O cosmo está envolto numa força invencível, que é o amor de Deus. Essa força faz todos os seres subirem em direção a Deus, passando por muitas fases evolutivas em diferentes corpos e experiências, inclusive em outros mundos inimagináveis para o habitante da Terra. O amor de Deus arrasta tudo para o alto, para a profundidade e liberdade do espírito, e os seres se agrupam por semelhança numa marcha ascensional.
         O homem santo também não se limitava a filosofar. Compôs toda uma doutrina de comportamento e purificação mística baseada no amor. Combateu a idéia de indignidade da raça humana, que não via como pecadora, mas inteiramente santa e divina. Difundiu em sua comunidade uma mística do amor ao próximo e a natureza, muito semelhante à renovação que Francisco de Assis tentou desencadear na Igreja católica exatamente no mesmo período.
          Outro místico e filósofo importante é Al Farabi. Grande leitor de Platão, Aristóteles e Plotino, criou uma cosmologia filosófica muito complexa para o Islamismo, segundo a qual os seres seriam atraídos por um magnetismo espiritual constante em direção ao “centro de si mesmos”. O resultado desse processo de desenvolvimento seria o autoconhecimento, coincidindo com o conhecimento de Deus que é a fonte do espírito.
         Al-Farabi foi de uma erudição lendária. Criou instrumentos e estilos musicais inovadores, provou a existência do vácuo, reformulou a matemática e a lógica, chocou muitos pensadores muçulmanos ao afirmar que o Corão deve ser submetido ao crivo da razão e que o homem possui livre-arbítrio. Sua cultura era tão ampla e tão geral que o seu nome foi preservado inclusive na Europa, especificamente no idioma português, através da palavra Alfarrábio, sinônimo de escritos antigos, extensos e difíceis.
           Uma homenagem aos sábios espiritualistas muçulmanos não possui valor se deixar de fora a menção honrosa a Ibn Arabi. Esse grande intelectual e místico espanhol desenvolveu técnicas de respiração e meditação que lembram em muito as do yoga, objetivando o aumento da força de vontade e do autodomínio através do controle severo da respiração. Também recomendava e praticava diariamente meditações longas, baseadas na contemplação de Deus e repetição de suas glórias.      
       A vida mística de Arabi começou com uma estranha visão. Ele viu-se repentinamente atirado para o alto, como se voasse para os seus, mas sem sair do lugar onde estava. Viu aproximarem-se três figuras majestosas, que ele reconheceu como sendo Moisés, Jesus e Maomé. Os três tinham uma mensagem para ele. Jesus recomendou-lhe a vigilância, Moisés o estudo, e Maomé recomendou: “Esteja sempre comigo.”
             Arabi seguiu fielmente os três conselhos, o melhor que podia, e estudou filosofia e religião. Anos depois, em fins do século VI, ele teve outra visão impressionante. Diante dele desfilaram em instantes todos os profetas e homens santos de diferentes religiões e ele os reconhecia sem que nenhuma palavra fosse dita. Ao despertar do transe uma única lição ecoava em sua mente: “Todos os profetas foram enviados por Deus”.
         A partir dessa fase as visões se tornaram comuns para Arabi, mas não mais espontâneas. Ele desenvolveu uma técnica de concentração que lhe permitia entrar em transe voluntariamente, o que viabilizava visões mais longas. Algumas delas eram muito simbólicas, lembrando as visões do Apocalipse de João. Outras eram inteiramente relacionadas à sua vida terrena. Nestas últimas incluíam-se visões do futuro, seu ou de outros, intuições sobre o que outras pessoas faziam a distancia e mensagens diretas, geralmente na forma de um comando ou conselho.
        Fenômenos de vidência, premonição, vozes diretas, inspiração, aparições luminosas, curas espirituais e filosofia espiritualista, incluindo freqüentemente idéias reencarnacionistas, são comuns no Islamismo, embora impopulares. Sempre houve pessoas que defendiam práticas ou a crenças espíritas, e costumeiramente elas eram tidas como santas e respeitáveis. Nomes menos famosos do que esses podem não ter sido registrados pela história, mas o estudo das tradições orais, ditados e lendas dos diversos povos islâmicos pode trazer interessantes revelações sobre o quanto de Espiritismo há nessa religião mundial.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A virtude dos estóicos

A virtude essencial dos estóicos era a verdade. Eles não pregavam sempre uma vida frugal e ascética. O rigor e a disciplina eram mais conseqüências do que postulados fundamentais. Na base de tudo estava a preocupação de se atingir um estado de perfeita honestidade, de sinceridade consigo mesmo e com os outros. Todo o resto é secundário no estoicismo, mas evidentemente a maioria dos que se ocupam em manter um grau elevado de sinceridade encontrarão obstáculos psicológicos que geralmente só podem ser superados com uma disciplina heróica.
         Os estóicos, como todos os socráticos, são intelectualistas convictos, e acreditam no papel essencial da razão para a vida feliz. Os hedonistas e epicuristas, aos quais se atribui popularmente uma espécie de inimizade em relação aos estóicos, eram igualmente intelectualistas que acreditavam no papel preponderante da razão para evitar o desprazer, a frustração e o ressentimento. Todas as escolas socráticas, não importa a sua ênfase, tinham em comum a consciência da fragilidade do conhecimento humano, o que lhes conferia a famosa humildade socrática de jamais considerar suas posições como verdades absolutas, senão sempre como propostas sensatas, mas falíveis de entendimento da realidade. Também compartilhavam a importante característica de se concentrarem todos sobre a moral. Considerando que o conhecimento é incerto e a vida uma realidade, convém não investir tanto tempo na investigação do mundo e voltar as forças do espírito para a meditação sobre a vida, e sobre como ela pode ser melhor. Naturalmente este esforço de reflexão sobre a possibilidade de uma vida melhor só faz sentido se houver uma crença prévia de que a razão é eficaz nesta tarefa. Desta forma todas as escolas socráticas se ocupavam exaustivamente com a correção do intelecto, pois atribuíam a maioria dos sofrimentos da vida a erros de interpretação, expectativas ilógicas e fantasiosas, auto-engano, desinformação e mentira.
         A mentira ocuparia para os estóicos um papel mais importante do que para os demais socráticos, pois eles a enxergavam como síntese de todas as demais fraquezas intelectuais. Seu diagnóstico apontava para o orgulho e a malícia como a fonte da mentira. Quem transmite uma informação é sempre responsável pela atitude com que o faz. Se a postura do comunicante é humilde e consciente, ele confessará estar expressando uma opinião ou um raciocínio lógico, mas falível. Se esta postura, entretanto, for de malícia, o comunicante tem interesse em enganar o ouvinte. Se a postura for arrogante, segura de si e dogmática, o comunicante incute suas crenças e arrazoados nos ouvintes, revestindo-as de aparência de verdades absolutas. 
Os estóicos eram excelentes psicólogos, e perceberam que estes erros de postura muitas vezes são inconscientes, fruto de má educação ou hábito. Por isso propunham uma educação filosófica muito semelhante a uma psicoterapia, em que o estudante buscava identificar em si as causas de seus enganos, idéias fixas, dogmas e vícios. Este exercício era marcadamente liberal e individual, não havendo qualquer tábua de valores ou normas que o praticante fosse obrigado ou mesmo aconselhado a seguir. Mais ainda do que o psicoterapeuta atual, o mestre estóico não interferia na auto-análise do discípulo, limitando-se a fazer a sua própria auto-análise pública. As aulas dos maiores mestres, como Epicteto, consistiam exclusivamente em confissões públicas de seus defeitos e vícios e no método usado por ele para corrigi-los. Os discípulos deveriam fazer uma análise semelhante, raramente ou mesmo nunca recorrendo ao mestre para orientação. Este método guarda semelhanças óbvias com as práticas de meditação dos yogis e budistas.
Epicteto.
O famoso livro “Meditações” de Marco Aurélio sequer foi feito para publicação, sendo apenas um resumo de análises que ele escrevia sobre e para si mesmo. As exortações contidas no livro não são prescrições morais para um leitor, mas determinações que ele dava a si mesmo, conforme sua própria índole e de acordo com os objetivos que ele mesmo se impunha. Os estóicos eram famosos por ser muito tolerantes e misericordiosos com os seus semelhantes, jamais exigindo posturas de disciplina ou condenando aqueles que não as adotavam. É, portanto, absurdo creditar-lhes uma postura taciturna e crítica, a não ser com base na prática popular do estoicismo, que muito lembrava a circunspecção das ordens monásticas cristãs. Muitos estóicos, a exemplo do imperador Marco Aurélio, tinham boa condição de vida e participavam plenamente da vida social, a qual nunca condenaram. 
A idéia de que os estóicos fossem reclusos ou eremitas vem de uma confusão quanto as suas críticas dirigidas ao apego e a servidão aos bens materiais. Estas críticas eram motivadas pelo seu interesse esclarecedor em afirmar que tal apego não é necessário à felicidade, e pode tornar-se fonte de sofrimento, e não do desprezo pelos bens ou estilo de vida em si. O foco dos estóicos jamais foi a ascese do corpo ou a pobreza, mas a transformação do ponto de vista. Alguns mestres consideravam em sua auto-análise ser essencial a ruptura radical com a sociedade, e o faziam. Raramente, entretanto, o recomendavam aos seus discípulos, e lembravam que este afastamento da vida econômica e social era um traço de fraqueza pessoal em resistir ao domínio das facilidades e comodidades enganosas da vida.
O que se pregava efetivamente era a necessidade da correção intelectual e psicológica sobre a vida. Riqueza ou saúde, fama ou amizade podem esvair-se sem que o seu dono nada possa fazer. A morte atinge inexoravelmente a todos, independente de sua posição, conhecimento, respeitabilidade ou poder. A beleza que atrai agora pode esconder um caráter pérfido, e mesmo que assim não seja desaparecerá com os anos. Entendida esta transitoriedade da vida, o filósofo estóico conclui pela futilidade das amarras físicas e sociais, e se volta prioritariamente para a sabedoria que não lhe escapa nas horas de infortúnio ou de distração.
É a ilusão e o auto-engano que fazem os acidentes da vida parecerem glórias. Que dizer de um imperador cujo direito de governo e autoridade foi conferido por ter nascido? E não são maiores os méritos dos governantes eleitos, pois sendo a maioria dos homens estúpidos ou viciosos a vontade da maioria não representa qualquer superioridade. Por isso os estóicos lembram sempre do desinteresse prudente em relação a qualquer honraria. Jamais deve o homem julgar-se merecedor de elogios e glórias, pois os que o fazem podem ser apenas maus juízes, ou as glórias imerecidas, fruto do acaso. Somente o orgulho engana o homem e o faz pensar que a sua grandeza está em seu mérito. Nada, a não ser nossa opinião e nosso comportamento, está em nosso mérito. Se o nosso comportamento resulta em fracasso ou sucesso, isso tem a ver com fatores que vão desde o clima propício até a influencia de milhares de outras pessoas, e não se pode jamais imaginar que a ação individual é responsável pelos resultados.  Entendendo que muitas coisas não estão em nosso poder, os estóicos se libertam da ansiedade e da expectativa de quaisquer resultados, novamente em exata relação aos ascetas orientais.
Um estóico jamais persegue a glória, pois sabe que ela nem depende dele, nem significa qualquer coisa além da opinião alheia sobre a grandeza. Se a glória lhe cai nas mãos, como no caso de Marco Aurélio, ele a considera um acidente ou uma vontade da Providencia, não tendo em ambos os casos de que se orgulhar. Age no seu melhor para que sua posição seja bem exercida, e tem em conta que ela não é melhor ou maior do que a de um camponês ou pescador, pois o mesmo destino que lhe pôs no trono e ao pescador na sua choupana poderia ter invertido os papéis. Também não foge da riqueza ou da fama, a não ser que as considere prejudiciais ao seu estado de espírito. Age com a mesma naturalidade e imparcialidade com que agiria na pobreza e no anonimato. Respeita e honra o privilegio de que desfruta, como alguém que tem em conta algo de valor que lhe foi confiado. Nada considera seu, a não ser o que está em seu domínio, o seu próprio espírito.
Ninguém expressa melhor este sentimento de liberdade e esta resignação absoluta quanto ao que não pode ser mudado do que Epicteto. Escravo durante a maior parte de sua vida, o filósofo tinha a certeza prática de que nossos atos e méritos são limitados de todas as formas possíveis. Ele não regulava o que comia, nem a que horas se levantava, nem onde dormiria, nem o que faria durante o dia ou com quem passaria seu tempo livre. Sua vida limitava-se a obedecer as determinações de um senhor severo e compartilhar seus momentos livres com outros habitantes da casa, com os quais também não escolheu conviver. Não obstante era muito feliz e dizia que nenhum homem possuía mais liberdade que ele, já que na vida todos somos limitados por inúmeras condições da natureza e da sociedade. O homem ordinário, observava ele, geralmente é menos livre do que o escravo filósofo, pois pensa que é senhor de seu destino e está escravizado pela própria mente, repetindo hábitos mecânicos quase invariavelmente.
Tal era a sua abnegação e resignação que ele sequer sentia-se atingido pelas desgraças mais amargas, pois, dizia, não se pode lamentar contra natureza ou a Providencia. Tudo o que está fora de nosso poder deve ser aceito, o que está em nosso poder, deve ser mudado, sobre nada deve-se preocupar ou ansiar. Tão real era esta convicção que certa vez ao receber bastonadas de seu senhor, o filósofo teria comentado com serenidade: “Senhor, assim quebrarás certamente a perna do teu escravo.” Como que indignado por esta observação e porque o escravo não demonstrasse medo, o amo bateu ainda mais forte sobre a canela, que partiu-se com um grande estalo. Após os primeiros instantes de dor, e observando no amo a expressão de arrependimento, Epicteto conclui sem qualquer rancor: “Vês senhor, danificaste a tua propriedade.”
Com a imensa popularidade dos estóicos entre as classes cultas do Império Romano, é mais do que natural que os primeiros cristãos absorvessem muito desta filosofia, especialmente pelo seu caráter menos abstrato e cunho moralizador. Através do Cristianismo uma parte da filosofia estóica sobreviveu, até nós.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Espiritismo e filosofia alemã.

Nos dias atuais é de impressionar o quão pouco se sabe sobre o papel dos filósofos alemães no desenvolvimento do Espiritismo. Certo é afirmar que, do ponto de vista cultural, a Alemanha é o único país a contribuir para a formação do Romantismo e do Idealismo, correntes de pensamento essenciais ao desenvolvimento do Espiritismo na Europa.
Não quero falar tanto de como surgiram o Romantismo e o Idealismo, remeto o leitor ao meu artigo “O descobrimento da Alemanha por Madame de Stael. Basta dizer que, exceto por Rousseau, a França não teve colaboração nas fases iniciais destes grandes movimentos, e por mais que a França e a Grã-Bretanha tenham importância fundamental no progresso científico da Era Moderna, suas bases filosóficas jamais permitiriam aflorar uma filosofia como a do Espiritismo. Infelizmente, como comentei nos textos anteriores deste blog, a consciência histórica do Espiritismo tende a se limitar muito a história da Roma antiga e da França moderna.
Para desfazer este mal entendido é preciso remontar a Europa do século XVII, quando o racionalismo se estabelecia. Todos conhecem bem a importância de Descartes, dos empiristas ingleses e dos cientistas como Galileu, Copérnico e Kepler. O que nem sempre é igualmente conhecido, foi o surto de misticismo e piedade religiosa ocorridos na Alemanha neste período. Enquanto as outras nações civilizadas da Europa entravam na Era Moderna pelo caminho da ciência, com uma filosofia mecanicista para a natureza, separada do espírito, compondo o famoso dualismo cartesiano, a Alemanha formulava uma visão mais mística, embasada nas tradições do platonismo e do hermetismo egípcio, onde a natureza e o espírito eram a mesma coisa.
Embora o mundo latino também tivesse os seus expoentes místicos no mesmo período, como Giordano Bruno, este tipo de filosofia só era adotado com muitas ressalvas e restrições, enquanto na Alemanha, a reação à ortodoxia luterana provocou uma adesão mais geral ao surto espiritualista. Ocorre que o cânone luterano original fazia a salvação da alma depender exclusivamente da fé. Isso fez nascer nos países luteranos uma geração inteira de crentes formais, que se justificavam apenas pela sua adesão de fé a Bíblia, mas que não possuíam uma vida cristã. A degeneração social chegou a um ponto intolerável para as almas mais piedosas, que fizeram um movimento de restauração da piedade cristã. Este movimento conhecido como Pietismo, visava restabelecer em mundo protestante a pureza da mensagem sentimental e mística de Jesus. Seus adeptos evitavam a igreja, cujo culto consideravam meramente social, e faziam encontros caseiros onde a Bíblia era lida de maneira mística e emotiva. Cada crente visualizava as passagens do Evangelho como se estivesse presente nas cenas narradas, e vivenciava efetivamente as curas, as repreensões morais e as exortações à virtude feitas pelo Cristo. Com isto o crente sentia-se em uma comunhão profunda com o Messias e com Deus.
Filósofos iluministas como Wolff e Kant, que costumam ter má fama entre os espiritualistas, eram pietistas convictos, e aderiam a estas práticas. Eles também contribuíram para dar uma linguagem mais universal ao pietismo, evocando uma moral pessoal, vinda exclusivamente da consciência, independente de mandamentos externos. Também entre os pietistas existiam inúmeros indivíduos conhecidos por imensas obras de caridade. August Hermann Francke, por exemplo, criou uma cidade inteira voltada para a educação. Retirou crianças das ruas e da criminalidade, oferecendo-lhes lares e ensinando-lhes profissões simples. Em sua escola estudavam conjuntamente os filhos dos ricos e estes órfãos recolhidos das ruas.
O ensino ia do pré-escolar até a pós-graduação em teologia, e era tal a sua excelência que pessoas vinham de longe para estudar na escola e faculdade criada para aqueles ex-desabrigados. Por volta de 1700, Francke também instituiu revolucionariamente a educação para meninas em todos estes níveis, com o mesmo conteúdo que a dos meninos. Isto foi feito mais de cem anos antes da formação das escolas públicas na França.
Os pietistas se caracterizavam por uma religião privada e muito fervorosa, mas com grande liberdade e juízo crítico. Sem respeitarem hierarquias e dando pouca distinção aos pastores, privilegiando o culto caseiro, eles ajudaram a reformar a Alemanha com suas tradições conservadoras da mesma forma que os céticos e livre-pensadores faziam nas demais nações da Europa. A Alemanha pulou a fase atéia e sensualista que caracteriza a França e a Inglaterra do século XVII, entrando na Era Moderna através de uma reforma libertária de cunho fortemente espiritualista.  
O que distinguia os pietistas em dois grupos era a concepção da natureza. Uns a consideravam essencialmente material e mecânica, como Kant, outros essencialmente divinizada e vivente, como Böhme, Herder e Goethe. Todos, entretanto, eram reencarnacionistas.
A ideia de reencarnação na Alemanha não surgiu com Leibniz em 1714, conforme se pensa e divulga muito. Leibniz cogitou da ideia de palingenesia, mas considerava-a estranha ao cristianismo. Sua filosofia das mônadas pressupõe sim uma evolução do princípio espiritual, mas esta só ocorreria durante a vida na Terra e depois continuaria no mundo espiritual. Não haveria retorno a Terra. Foi Christian Wolff quem introduziu o conceito de reencarnação em 1730, usando exatamente o argumento da mônada de Leibniz. Com o seu conceito de metempsicose racional, Wolff reformulou a tradição Greco-egípcia sobre reencarnação acrescentando que as mônadas espirituais de Leibniz não esgotavam todas as experiências na Terra em uma única vida. A Terra ofereceria uma quantidade tão variada de vivências e experiências que a alma poderia tirar muito proveito de um retorno constante a este mundo, sem repetir os caminhos já trilhados.
Christian Wolff teve impacto imediato sobre a filosofia alemã em todos os aspectos e a reencarnação não foi o último deles. Lessing tornar-se-ia o primeiro e mais vigoroso defensor desta ideia. Estabelecendo os princípios da teologia racional protestante. Entre outras reformas no sistema teológico, Lessing adotou a ideia de reencarnação e a de que Jesus Cristo não seria o filho único de Deus e sim o revelador de que todos somos um com o Pai. Ele não queria com isso uma redução da figura divina do Cristo, mas lembrar que a mensagem do Evangelho é a de divindade universal de todos e todas as coisas. Só existem seres divinos, e os conflitos, o mal e o sofrimento só existem enquanto esta herança não é posta em ação. 
Foi Lessing quem popularizou o conceito de palingenesia na Alemanha.
Outro seguidor de Wolff foi Kant, que estabeleceu em sua “teoria do céu” a doutrina dos corpos sutis. A alma teria, para ele, um corpo intermediário entre a natureza física e a espiritual. Este corpo sobreviveria depois da morte do corpo físico, conservando a memória, a sensibilidade e as características pessoais. Com isto, acreditava Kant, estaria explicada a transmigração da alma pelos corpos com a conservação da personalidade. Ele também insistia que a evolução do espírito em razão e moralidade tornaria este corpo espiritual mais puro, de modo que a vida na Terra seria progressivamente mais difícil para estas almas, e elas deveriam subir a mundos igualmente mais puros. Nestes outros mundos, a alma teria corpos leves, podendo voar e transmitir o pensamento sem impedimentos da nossa esfera material. Mais tarde, entretanto, Kant chegaria à conclusão de que estas ideias não poderiam compor uma filosofia propriamente dita, pois esta especulação era impossível de ser comprovada com a experiência disponível, mas jamais renegou suas disposições em matéria de convicção pessoal.
Neste período, entre 1770-1780, tornou-se moda na Alemanha a leitura de Rousseau, o grande filósofo místico da latinidade, traduzido em termos claros e populares da linguagem iluminista. Rousseau iria influenciar sobremaneira a Herder e Goethe, que colheram nele a sua filosofia do sentimento, juntando-a com a idéia alemã de reencarnação. Herder teve papel crucial na formação da doutrina da história, e dentro dela inseriu seu conceito de reencarnação. Ele vislumbrava a marcha das civilizações como a ascensão do espírito ao longo de suas labutas no processo evolutivo para a perfeição divina. Assim, os progressos intelectuais e morais das distintas eras da história, seriam ocultamente influenciados pelos progressos das nossas almas em constante aprendizado, que reencarnando de uma para outra civilização, produziriam o progresso que aos olhos humanos se dá por meios meramente sociais.
Goethe, por sua vez, criou a primeira doutrina consistente de metamorfose e evolução biológica, mais de cinqüenta anos antes de Darwin, em fins do século XVIII. Ele inferiu que o princípio vital dos seres organizaria e dirigiria a metamorfose do embrião ao indivíduo adulto, da semente à planta, e poderia propiciar metamorfoses de um animal em outro, por evolução. Estas metamorfoses Goethe atribuiu, em parte, ao processo de reencarnação, que transmitiria as forças das mônadas espirituais de um organismo para outro. Se o organismo receptor não pudesse mais conter a força da mônada desenvolvida, ele deveria adaptar-se com uma metamorfose, e esta seria a causa da evolução das espécies.
Não poderíamos terminar sem citar Heinrich von Schubert, médico e biólogo inspirado por Mesmer, Goethe e Herder. Por volta do começo do século XIX, Schubert realizou pesquisas diversas tentando cruzar a teoria do magnetismo animal de Mesmer com as teorias reencarnacionistas alemãs. Lembramos que Mesmer era ateu e materialista, e acreditava que o magnetismo animal era um fenômeno material ordinário. Schubert defendeu então em suas pesquisas que o sono seria o desprendimento do espírito do corpo, propiciando os fenômenos de magnetismo divulgados por Mesmer. O uso destes fenômenos em estado de vigília não contradiz esta teoria, pois o desprendimento do sono seria possível, segundo ele, através de um transe ou estado profundo de concentração. Além desta ligação entre o sono e o magnetismo, Schubert também fez pela primeira vez a análise dos sonhos com base numa teoria espiritualista racionalizada. O sonho seria a recapitulação simbólica das experiências do espírito enquanto desprendido do corpo. A mesma idéia seria defendida por Kardec quarenta anos depois.
É desnecessário prosseguir com a lista de nomes. O fato é que existe uma ampla documentação desta passagem histórica do conceito de reencarnação via Romantismo da Alemanha para a França, por volta de 1805-1820. Enquanto este momento histórico não for competentemente anexado às obras de história do Espiritismo, estes importantes autores permanecerão injustiçados. 

domingo, 3 de outubro de 2010

Perspectiva crítica do Espiritismo.

           Se há algo em que a filosofia pode contribuir para a melhor compreensão do Espiritismo e sua inserção na pauta de debates especializados é o enfoque histórico-crítico que ela viabiliza. Isto porque a filosofia é uma disciplina de crítica, a única, aliás. Enquanto a ciência é obrigada a pressupor o seu objeto de estudo antes de investigá-lo e enquanto a religião pressupõe um relacionamento possível com o Sagrado, preocupando-se estritamente em estabelecer as regras deste relacionamento, a filosofia é a única atividade humana que se esgota a si mesma. Ela coloca sob o crivo da razão sua própria condição de existência, e uma mera definição do que seja filosofia não é o ponto de partida, mas o fim de todos os esforços filosóficos.

        Por mais que isto choque o senso comum, as ciências partem de dogmas fundamentais e não de um método crítico. Claro que o método científico é racional, eficiente e muito elaborado, mas ele só apresenta os seus rigorosos critérios em confronto com os seus objetos de investigação: os fenômenos e as teorias sobre eles. A ciência jamais volta as suas armas contra si mesma, como a filosofia o faz, e todos são capazes de reconhecer os seguintes dogmas científicos básicos:
1-    Existe uma realidade objetiva garantindo a existência de fato de tudo o que vivenciamos e experimentamos. Por outras palavras, nossa existência não é apenas um sonho, mas está radicada numa realidade independente de nós.
2-    Somos capazes de investigar esta realidade com o poder de nossa observação judiciosa.
3-    Para que o item 2 seja verdadeiro, devemos ser capazes de estabelecer exatamente o que é uma observação judiciosa. Temos, portanto, uma idéia bem definida do que é lógica, verdade, e outros elementos mentais necessários a este juízo.
Um cientista que duvide seriamente destas condições acaba desistindo do seu trabalho e torna-se um filósofo.
Aquilo que separa, portanto, a tarefa e a utilidade dos trabalhos científicos e dos trabalhos filosóficos é uma questão de princípios que, por sua vez, regulam interesses distintos. Se queremos discutir o que é possível conhecer, e como o conhecimento deve se organizar, devemos filosofar. Se, por outro lado, desejamos sair desta enrascada inicial, e partir corajosamente por uma trilha menos fundamentada, mas que traz muito mais resultados, devemos fazer ciência ou matemática.
Não haveria crise entre estas duas grandes disciplinas racionais, filosofia e ciência, se ambas estivessem totalmente conscientes deste papel. Mas o fato é que o impacto popular e emocional da ciência é incomparável devido aos resultados práticos que somente ela proporcionou a humanidade. Duvidar e fundamentar o conhecimento garante segurança contra todo o tipo de preconceito e posturas ingênuas, mas não nos traz conforto, segurança, saúde e diversão na mesma proporção em que a tecnologia o faz. Isto produziu um problema de julgamento inteiramente compreensível, de que a ciência seria um critério de verdade de maior validade do que a sua companheira mais velha, a filosofia, que em inúmeros séculos não pode apresentar os mesmos resultados.
Justiça seja feita, a filosofia produziu menos idéias frutíferas, do ponto de vista prático, do que a ciência. Ela monopolizou, por falta de alternativa melhor ao seu método, o conhecimento acerca da natureza, conduzindo muitas vezes a labirintos estéreis de teorias sem suficiente base de comprovação empírica. Por outro lado, ela fez muito com os métodos que possuía, e se a ciência é de algum modo um dos frutos da filosofia, esta última é também responsável pelos méritos que a nova disciplina colher. Ademais, agora que temos o método científico para tratar de questões naturais, a filosofia volta suas forças sobre os temas que realmente pode tratar de modo privilegiado, uma vez que não depende em nenhuma medida de investigação empírica, senão exclusivamente de análise de princípios e julgamentos de valor.
Estes métodos são atualmente a teoria do conhecimento, que investiga exatamente as condições em que o conhecimento é possível, se é que o é; a ética, que investiga a possibilidade de fundamentação de regras para a conduta, segundo valores como a felicidade, liberdade e a justiça; a estética, que se pergunta acerca da possibilidade de estabelecer valores universais de julgamento da qualidade e natureza da obra de arte; a lógica, que se pergunta se é possível e como procede uma análise inteiramente imparcial; a metafísica, vértice e guia das demais disciplinas, definindo que tipo de relacionamento é possível entre as demais esferas e em que sentido cada uma delas pode aspirar a uma realidade objetiva. Eles não englobam, contudo, todas as disciplinas filosóficas encontradas nos manuais e nas universidades, mas as matérias restantes podem ser derivadas destas principais. Assim temos a filosofia da religião e a cosmologia derivando principalmente da metafísica e da teoria do conhecimento, a filosofia política como uma expansão da ética do indivíduo para a sociedade, e assim por diante.
Todas estas disciplinas contribuem em muito para o estudo criterioso de um conjunto teórico vasto e abrangente, como é o Espiritismo. Os seus muitos aspectos como religião, ciência e filosofia, suas implicações éticas, suas teorias sobre a realidade e o papel do homem dentro dela, são só a ponta de um iceberg capaz de consumir gerações de estudos e pesquisas. Mas, não obstante a filosofia esteja na raiz do Espiritismo como em nenhuma outra religião na história humana, a perspectiva filosófica nem sempre é aplicada entre os seus divulgadores, e eu diria até mesmo entre os seus teóricos. Para delimitar bem e exemplificar o que digo, escolho dentre as possibilidades que a filosofia permite, a de uma análise histórico-crítica do Espiritismo.
Quando falamos neste tipo de análise, queremos explicitar o papel do desenvolvimento histórico de um grupo de idéias dentro do sistema orgânico da cultura, traçando suas origens e linhas de influencia, seus desdobramentos e impacto, e situando geográfica e culturalmente o fenômeno observado. Neste tocante o Espiritismo vulgar mostra-se demasiadamente carente, em contradição com a qualidade e a lucidez de algumas de suas obras basilares. Desta maneira, surge um abismo entre a consciência esclarecida de autores como Kardec, Denis, Bezerra de Menezes, Herculano Pires e autores espirituais diversos, e a idéia geral da inserção histórica do Espiritismo. Do lado dos primeiros temos uma genuína filosofia da história, por parte dos últimos temos uma crença ingênua quanto a exclusividade do Espiritismo dentro do processo histórico, como se ele estivesse destacado dos acontecimentos gerais. Prova conclusiva em favor desta afirmação é o fato de que há décadas não há interesse em pesquisa histórica do Espiritismo, ou ela se limita a temas evangélicos ou diretamente ligados aos primórdios do Espiritismo por começos do século XIX. Conquanto todos estes trabalhos sejam de suma importância, estamos convencidos de que este cenário precisa mudar.
Em parte, o problema de consciência histórica do Espiritismo pode estar relacionado com as obras históricas de autores espirituais como Emmanuel e Humberto de Campos. Isto porque, apesar das insistentes afirmativas destes espíritos de que suas obras A caminho da luz e Brasil: Coração do mundo, pátria do evangelho, respectivamente, tratam da história de um ponto de vista exclusivamente espiritual e insuficiente do ponto de vista propriamente histórico, o público geral tende a ignorar estas ressalvas e adotá-las como referencia histórica, sem maiores considerações.
Este erro de compreensão e recepção de obras como estas, criou uma consciência histórica sem contato com a realidade do mundo, em franca contradição com as ressalvas feitas pelos autores citados, que não queriam uma substituição do trabalho historiográfico humano, documentado, geograficamente situado, etc.
Dentre os inúmeros problemas causados por esta falha de compreensão, cabe citar a autocompreensao histórica de muitos espíritas como pertencentes a um movimento sem bases na cultura de onde este é proveniente, ou seja, a cultura francesa, católica, racionalista e positivista do século XIX, em sua maior parte, e seus contemporâneos protestantes na Inglaterra e Estados Unidos.
Para detalhar ainda mais a importância desta perspectiva histórica, basta ressaltar que apesar dos pesquisadores espíritas renomados de diversas procedências, como Aksakof, Zöllner, Du Prel, Lombroso e Bozzano, o Espiritismo não vingou minimamente em seus países de origens, apesar do entusiasmo de milhares de adeptos na Rússia, Alemanha e Itália. Com isto se pode concluir, no mínimo, que o desenvolvimento do Espiritismo dependeu, ao menos em parte, das condições privilegiadas das nações mais liberais e laicizadas, tais quais as três primeiras citadas, e com isto já podemos tirar inúmeras conclusões técnicas frutíferas.
Esta e outras questões de alta importância para um estudo sistemático do Espiritismo são anuladas em seus pontos de partida se abdicamos ou olvidamos do estudo filosófico constante desta tradição. Com isto, corremos o risco de perder o vínculo de identidade e verdade do desenvolvimento da doutrina espírita, substituindo-o pela mitologia.
Bem entendido, mitologia não é necessariamente a descrição das idades recuadas sobre a formação do mundo e acontecimentos mágicos, senão a descrição de qualquer acontecimento histórico do ponto de vista exclusivamente dogmático. Se dizemos, portanto, que o Espiritismo é um movimento de revelação dos espíritos, cuja época e forma foram assinalados por Deus, estamos abdicando de uma explicação histórica e crítica para adotar exclusivamente uma explicação mítica, ou seja, narrando um evento histórico de uma forma que não pode ser confirmada ou racionalmente analisada. Uma tal explicação das origens de um acontecimento não nos permite nenhum tipo de estudo racional sobre as idéias espíritas, obrigando-nos, ao contrário, a depositar fé incondicional e cega no dogma da revelação.
Esta perspectiva está em claro confronto com as bases da proposta espírita, que é a de uma fé racional, implicando com isto a dúvida sistemática e o julgamento criterioso de elementos revelados ou outras hipóteses explicativas. É, portanto, inaceitável a idéia de que o Espiritismo se resume numa revelação. Sua natureza exige um duplo ponto de partida, coisa extraordinária na história das religiões, que seria o de uma revelação dependente de condições históricas. Seus inúmeros formuladores compartilhavam desta percepção, afirmando sempre que a revelação generalizada do Espiritismo dependia inteiramente de certos progressos sociais e científicos que permitissem uma compreensão mínima dos fenômenos naturais e morais implicados. Ao menos quanto a isto guardou-se no Espiritismo um senso histórico profundo, a ponto de tornar-se senso comum a concepção de que ele não poderia ter surgido em épocas anteriores, ou em outro lugar que não fossem os países mais civilizados da Europa Ocidental. O conhecimento mínimo de história torna este preceito plenamente compreensível.
Como dito anteriormente, em nenhuma religião a revelação divina depende de condições culturais prévias, e isto quase descaracteriza o Espiritismo como religião segundo os critérios de classificação existentes. Ele mesmo se reconhece corretamente como terreno de fronteira entre religião, ciência e filosofia. Sem limitar-se a nenhum dos três, compartilha elementos de todos, e isto lhe dá a sua exclusividade. Retirar dele o seu senso histórico seria matar-lhe uma parte vital de seu aspecto filosófico, condenando-o a reproduzir os modelos dogmáticos de religião. E é por isso que cabe insistir num projeto vigoroso e constante de crítica histórica do Espiritismo.
Conforme entendo, este projeto deveria conter ao menos as seguintes linhas de pesquisa:
1-    Análise histórica do Cristianismo e do paganismo helênico e druídico;
2-   Análise de religião comparada em torno dos conceitos principais do Espiritismo, como reencarnação, comunicabilidade com os mortos, justiça divina, progresso e pluralidade dos mundos habitados;
3-   Análise teológica e histórica da Reforma, do Renascimento e da Idade Moderna;
4-    História da cultura, enfatizando a história da filosofia, da ciência e da religião referentes à formação da mentalidade dos séculos XVIII e XIX.

Cada um destes temas possui naturalmente seus desdobramentos, e nenhum deles deixou de ser explorado por autores espíritas. Não obstante, como em todos os demais temas estes estudos devem prosseguir e jamais se pode considerá-los concluídos. Se a história de Roma ou do Egito antigo ainda vêem novidades e descobertas intrigantes aflorarem nos dias atuais, após milhares de anos de estudos, como cogitar-se esgotar em poucas décadas a investigação sobre um movimento complexo numa época infinitamente mais rica de detalhes, contradições e inovações?

sábado, 2 de outubro de 2010

O desafio atual da filosofia.



A estrutura cultural sobre a qual os avanços técnicos e sociais da Era Moderna foram edificados está em momento de crise. Este diagnóstico é tão mais certeiro quanto menos as pessoas parecem se preocupar com a filosofia e com todas as questões de valores que orientam as suas decisões práticas e teóricas. A ciência enfrenta impasses, a política ensandece, a sociedade se esfacela e a ordem moral é diluída, originando toda uma nova problemática.
Não há que considerar este processo apenas do ponto de vista negativo, pois ele tem o seu lado revolucionário, e toda a transformação exige destruição e reciclagem de elementos antigos. Mas imaginar que o grau sem precedente de “barbarismo cultural” praticado pela nossa era seja normal e justificável é também ignorar as tragédias dos povos ao longo da história.
Enquanto períodos de anarquia, relativismo e degeneração são comuns nas fases de transição pelas quais passam as civilizações, é também fato que nunca foram enfrentados tantos desafios quanto os criados pela tecnologia contemporânea. A poluição é o nosso refugo de todos os tempos, mas a indústria e os meios de vida atuais tornaram-na excessiva. A guerra é ameaça constante da humanidade, mas mesmo vivendo uma época de reduzidos conflitos, comparada a qualquer outra, os temores e ansiedades provocados pelas armas de destruição em massa e pela proliferação do terrorismo alimentam os instintos perenes de revanchismo e agressividade. A miséria, conquanto sempre tenha existido, faz contraste com a riqueza sem paralelo gozada não mais pelos governantes apenas, mas por populações inteiras, tornando ainda mais amarga e revoltante a experiência daqueles que vêem faltar todo o necessário em meio a uma sociedade que ostenta e desperdiça de maneira insana.
Entretanto, nenhum destes desafios seria insuperável se não fosse a conhecida estagnação de nossa capacidade moral, cujo desenvolvimento claramente não acompanhou o salto de entendimento e domínio da natureza. Não podendo dominar-se nem compreender-se, o homem intensifica muitas vezes os males provocados pela técnica e pelos meios de vida modernos, que poderiam ser atenuados ou inteiramente suprimidos com uma parcela não tão grande de bom senso e sensibilidade. Carecendo do fio da balança intelecto-moral, materializado no mundo pela tradição e técnica filosófica, a ciência confunde-se entre seu papel de investigação natural e o de ajuizamento quanto aos princípios do conhecimento e da ação. Ao passo que a maior parte da humanidade permanece agindo mais por instinto do que sob a tutela da razão, a parte esclarecida compra sem critério o engodo dos modelos explicativos da comunidade científica, que em muito extrapola o proveitoso papel da pesquisa científica, e descamba para as mais esdrúxulas cogitações filosóficas, carecendo, no entanto, para isto, de método e termos adequados que só a filosofia possui.
Em resumo, vivemos uma época em que a filosofia e a ciência se confundiram, não só porque a primeira falhou em diversas das suas especialidades quanto a uma explicação satisfatória da natureza, mas principalmente porque a segunda julgou ser isto motivo para tirar da filosofia o seu papel insubstituível de elaborar uma síntese explicativa do mundo. Tanto o público leigo quanto inúmeros cientistas especializados ignora que o materialismo, por exemplo, defendido como teoria científica, é em termos corretos uma teoria metafísica, ou seja, uma teoria que tenta dar explicação final para a realidade, e por questões de princípios, não por questões de fatos. Tanto o leigo quanto o cientista médio acreditam que problemas como o do funcionamento da mente, a existência ou não de livre-arbítrio e mesmo a existência ou não de Deus são problemas científicos, passíveis de serem solucionados com meio de explicações genéticas, neurológicas, astronômicas, evolutivas, etc; quando na verdade são problemas filosóficos que nenhum avanço nestas áreas pode decidir.
Mesmo que muitos cientistas estejam conscientes destas limitações de sua especialidade, a verdade é que uma ideologia da ciência estabeleceu-se na sociedade com a mesma força persuasiva que a ideologia católica exercia sobre o mundo medieval, dificultando o juízo claro e imparcial, já que tornou-se como que uma heresia discordar da ciência e tentar delimitar o seu papel ao campo dos fenômenos que ela se propõe a tratar. Neste contexto, a exposição, discussão e o esclarecimento básico sobre o que é e para que serve a filosofia se faz urgente.